A Câmara além dos vereadores
- 13/04/2016Um dia na Casa mostra como o trabalho de personagens tidos como secundárias é importante para o funcionamento da máquina pública
Dudu Assunção e Lorena Morgana | Foto destaque: Caíque Bouzas
São sete da manhã e algumas pessoas já estão do lado de dentro do Fórum Legislativo, no centro histórico de Salvador. Raimundo Carneiro é sempre um dos primeiros a chegar ao local. Cumprimenta as pessoas e vai para o banheiro se trocar – calçar sapatos, vestir camisa social e colocar gravata borboleta. Aos 61 anos, ele é garçom na Câmara há oito meses. “Eu chego às sete e só saio quando tudo acaba”. Às vezes não tem hora para acabar.
Quando tem sessão extra ou quando algumas votações se prolongam, Raimundo tem que ficar lá. “No início, a gente recebia a mais por isso, aí cortaram”, lamenta. Mesmo com o salário de vereador ultrapassando 15 mil reais, Raimundo diz que prefere continuar como garçom. Diz não ter vontade de se candidatar. “A gente sabe como é”. Não fala objetivamente, sorri, olha para a movimentação de outros funcionários que estão chegando e elabora melhor o que quer dizer. “Todo mundo sabe como a coisa funciona aqui. Hoje os caras se exaltam e brigam, mas amanhã tomam champanhe juntos no bar”, explica.
Nos dias de votação no plenário, o garçom precisa se vestir de maneira ainda mais formal. “Eu tenho que usar smoking completo. É bonito, mas faz muito calor”, explica sorrindo, enquanto aproveita para reclamar também do ar condicionado, que “não funciona bem para quem tem que andar pelos corredores o tempo todo”. Na bandeja, leva sempre água e café, únicas bebidas servidas na Câmara. “Quando vou dentro dos gabinetes, entro mudo e saio calado”. Ele conta que já ouviu conversas em reuniões a portas fechadas, mas não revela nenhum conteúdo. “Só digo que pedem café antes, durante e depois de cada reunião”.
Da casa
Quando se aproxima das oito da manhã, horário em que as portas da Câmara se abrem para o público, o porteiro Milton Oliveira, de 63 anos, se levanta e vai até a entrada para organizar em filas as pessoas que querem conversar com vereadores em seus gabinetes. Lá dentro, a movimentação também é intensa. Entre faxineiros que limpam o chão e os vidros das janelas, Romenildo Alencar, Auxiliar Legislativo de 52 anos, orienta alguns carregadores que chegam com mesas e sofás, peças que serão usadas no lançamento de um livro, à tarde, no Centro Cultural da Câmara. Romenildo tem pressa, pois prevê movimentação intensa de manhã, na sessão para debater o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. ”Em dia de PDDU, o bicho pega”, diz com a certeza de quem trabalha na casa desde 1987.
Romenildo, que é formado em Direito, Educação Física e já foi jogador de futebol profissional, gosta de acompanhar atentamente as discussões na Câmara. “No meio da sessão, às vezes eu fico doido para levantar a mão e dar alguma opinião, mas sei que não posso”. Então, aproveita a intimidade que tem com alguns vereadores para sugerir coisas novas. “Tem dia que eu paro um no corredor e falo: rapaz, isso aqui não está certo”. Ele conversa com os vereadores e com todos que passam pelo local onde trabalha. Os 29 anos de profissão o ajudam a conhecer dos mais novos aos mais antigos, e ninguém estranha que “Roma”, seu apelido, esteja escrito no crachá de identificação do auxiliar. Todo mundo o chama assim. “Só depois de muito tempo que eu consegui mudar esse nome”, diz, depois de perceber que sua previsão não estava certa. A sessão para discutir o PDDU não lotou. No auditório, pouco mais de um terço dos lugares disponíveis foram ocupados. “Uma coisa tão importante quanto o PDDU da educação, e ninguém vem”, lamenta Roma, usando a mesma frase dita por um vereador que sentava à mesa.
Olhos institucionais
Enquanto os debates aconteciam, José Ribeiro acompanhava o trabalho das duas pessoas que filmavam a sessão. Quando um vereador falou de maneira mais inflamada no microfone, Ribeiro andou rápido para a cabine de som e lembrou o operador de ficar atento à equalização do áudio, para não ter muita oscilação no volume da transmissão. Ribeiro tem essa preocupação todos os dias. Ele é o coordenador de rádio e TV, responsável pelos conteúdos produzidos pelos veículos oficiais da Câmara Municipal. “A gente nunca está satisfeito com o equipamento que tem, mas tenta fazer o melhor trabalho possível”, explica, preocupado em elogiar a equipe. Aos 69 anos, José Ribeiro conta que já poderia ter se aposentado, pois exerce sua função há 49 anos, mas tem muito gosto pelo que faz. “Apesar disso, sei que aqui eu tenho prazo de validade”, pontua o coordenador, que sabe da fragilidade de seu posto.
A equipe de Rádio e TV foi montada no início da gestão atual, em 2013, e os contratos terminam no dia 31 de dezembro deste ano. “Eu tenho 43 patrões [os vereadores], que podem mudar depois das eleições. Então não sei se vão me querer aqui ainda”, conta, antes de afirmar que tem bom relacionamento com os vereadores, mesmo depois de desentendimentos com alguns. “Quando teve aquele protesto do Movimento Passe Livre [em 2013], manifestantes se acorrentaram em frente à Câmara. Aí uns vereadores que apoiavam o movimento queriam que a equipe de TV cobrisse”. O episódio rendeu discussões, pois a equipe de TV não foi deslocada para a cobertura. “Não era uma atividade da Casa, não tinha como ir”, diz Ribeiro, reafirmando que tomou a decisão que considera correta. “Hoje está tudo bem. O pessoal confia no nosso trabalho”.
A equipe de Rádio e TV trabalha enquanto tiver sessão. Tudo é transmitido ao vivo e, posteriormente, Ribeiro edita o material para disponibilizar na internet. “Eu só faço pequenos ajustes para melhorar a qualidade da imagem e do som. Mas quando um xinga a mãe do outro, aí eu tiro. Isso não tem como deixar”. Quando perguntado sobre a possibilidade de um dia se tornar político, Ribeiro é enfático: “Já estou vacinado faz tempo”. Quem também já acompanhou momentos acalorados de discussão entre os vereadores foi o fotógrafo Reginaldo Ipê, mas ele prefere não entrar em detalhes, muito menos citar nomes. “Eu sou da assessoria de comunicação, qualquer coisa pode me complicar”.
Na Câmara, as pessoas conversam e olham sempre para os lados, acompanhando a movimentação. Entre os funcionários, muitos recusam qualquer diálogo com a imprensa. O cuidado exagerado é pela fragilidade de alguns empregos. Muitos são terceirizados, outros estão ali por apadrinhamento, em cargos comissionados. Transparência despreocupada mesmo só nas laterais do Centro Cultural da Câmara, que são de vidro e dão vista panorâmica para o Elevador Lacerda e para a Baía de Todos os Santos. A paisagem talvez encantasse algum turista, mas ali quase ninguém nota. É difícil se encantar pelo que faz parte do cotidiano.
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