Pegue a sua calcinha, abra um OnlyFans e fique rico você também

João A., Maria Raquel B., Pedro A., Samantha F. - 06/12/2023

Promessas de emancipação financeira, autogestão e trabalho fácil ampliam o mercado sexual plataformizado

João Francisco Araújo, Maria Raquel Brito, Pedro Antunes de Paula, Samantha Freire

“É uma grande contradição, porque na cabeça das pessoas ou você ‘ganha dinheiro fácil, só vendendo foto da buc*ta’ ou [dizem] ‘nossa, é uma vida de exploração, meu Deus, essas meninas são exploradas!’. Cara, decide. Ou eu tô sendo explorada com uma bola de ferro, trabalhando igual uma cachorra dentro de casa, ou eu tenho uma vida fácil. Você não consegue nem se decidir na narrativa”.

Em 2018, Sany era estagiária de uma empresa petroleira. Natural de Macaé, Rio de Janeiro, a jovem de então 20 anos havia se mudado exclusivamente para estar na mesma cidade que o emprego. Quando, no entanto, Sany não teve seu contrato de estágio renovado no auge da crise do petróleo, atividade econômica dominante do norte fluminense, ela precisou de estratégias para conseguir se sustentar em uma cidade igualmente devastada pela crise.

Foi um amigo que costumava sair com garotas de programa que despertou em Sany a curiosidade sobre aquela possibilidade de ganhar dinheiro. Com a resposta de que bastava se cadastrar em alguns sites para entrar no “catálogo”, ela passou um tempo pesquisando para descobrir onde poderia estar se envolvendo.

“Eu fiz um cálculo básico. Ganhava em torno de quinhentos e pouco de estágio, até que eu vi que eu conseguia fazer esse valor em questão de horas. Aí eu entrei no trabalho sexual. Me cadastrei no site, comecei a atender no meu apartamento mesmo. O primeiro valor que eu recebi foi R$150 em 15 minutos, e falei: ‘bom, não vou mais sair daqui'”, relata.

Em 2020, outra crise ameaçou interromper o fluxo de trabalho de Sany, ou Beatriz, seu alter-ego para os programas. Com o decreto da pandemia do Covid-19, o trabalho sexual realizado corpo a corpo se tornava inviável. Na época, o então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos indicou como solução o trabalho nas plataformas, conforme cartilha voltada para a população LGBTQIA+ publicada no início de abril de 2020. No trecho da cartilha que se refere a trabalhadores sexuais, lia-se:

Em resposta, o grupo SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade, organização gaúcha que luta pelos direitos LGBTQIA+, publicou uma carta manifestando preocupação com o tratamento destinado (ou a falta dele) à comunidade. O grupo defendeu a ingenuidade da medida, que priorizava o uso de equipamentos tecnológicos. 

“Até agora, as únicas medidas do governo federal divulgadas amplamente pela imprensa dão conta de uma recomendação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, orientando que trabalhadores sexuais optem por realizar programas por meios virtuais, o que além de ingênuo em relação à efetividade da alternativa, demonstra o desconhecimento sobre a realidade da maioria das trabalhadoras e trabalhadores sexuais que, vivendo em periferias e sem estrutura básica de sobrevivência, sequer tem acesso à internet e a smartphones ou computadores. É inadmissível que o Estado brasileiro tenha como ação apenas recomendações difusas e deslocadas da realidade”, diz trecho da carta.

Para Sany, a solução foi, de fato, criar sua primeira conta em alguma das plataformas que, no período, ganhavam propulsão: o OnlyFans. A burocracia, no entanto, afastou a profissional do site britânico, e ela migrou então para o Privacy, plataforma brasileira. Na Privacy, Sany teve problemas com vazamento de conteúdo, bloqueio de sua conta sem aviso prévio e outras burocracias. Atualmente, com 26, Sany, Deusaynas ou Beatriz, segue seu sonho de estudar biologia na universidade, com o tempo restante como prostituta apaixonada pelo que faz e criadora no 2Close, plataforma também brasileira que surge com um diferencial em relação às anteriores: foi criada por outra trabalhadora sexual.

Em setembro de 2022, Martina Oliveira virou notícia ao mandar instalar em Porto Alegre outdoors com uma foto acompanhada de uma pergunta em destaque: “Quer me ver pelada?”. O outdoor, que continha um QR code que redirecionava quem o acessasse aos perfis de Martina no OnlyFans e Privacy, rendeu uma notificação do Ministério Público do Rio Grande do Sul e o dobro da atenção almejada. Quem não viu os cartazes originais, ou suas reproduções no X, antigo Twitter, passou a conhecer a “Beiçola do Onlyfans” nos meses subsequentes por uma divulgação não intencional feita por outros usuários, que debatiam a moralidade e dignidade não só da estratégia de publicidade como também do trabalho sexual e sexualidade feminina como um todo.

Os TikToks e outras “peças publicitárias” feitas por Martina para divulgar seu trabalho, prática comum também entre outras criadoras de conteúdo, são exemplos do que Bárbara Mendes Lima, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisadora do mercado sexual, se refere como “obrigatoriedade de se tornar visível em múltiplas plataformas simultaneamente”. 

“Boa parte do trabalho é feito em muitas plataformas, como o Twitter. Eu acho que o Twitter centraliza bastante. Você tem acesso, a partir da divulgação dessas pessoas nas mídias digitais, a uma coisa que separa muito da pornografia tradicional, porque você acessa o ordinário da vida delas. A pessoa não está consumindo só conteúdo sexual, diferente da pornografia tradicional, onde não se conhecia muito sobre a vida da atriz em questão” afirma. 

A presença dessas trabalhadoras, seja pelo marketing de seu conteúdo ou pela mistura do conteúdo sexual com relatos do ordinário em seus perfis, colocou a prostituição (que, nos tweets descompromissados dos internautas, engloba todo tipo de trabalho sexual) nos ciclos de “debates” acalorados alimentados pelos algoritmos.  

No entanto, o aspecto sexual do trabalho nessas plataformas, permeado por um estigma baseado em moralismo e misoginia, dão novos contornos à conversa de um trabalho mediado. Em uma postagem recente, em que Martina relata ter comprado seu segundo carro e agradece à Privacy, os comentários e citações refletem alguns dos caminhos pelos quais o debate segue nas redes: OnlyFans é trabalho? Se sim, é digno? É um trabalho ou uma renda extra mais fácil que os outros? É uma forma de empoderamento da sexualidade feminina ou outro sequestro dela? É coisa de mulher valorosa? Quem faz merece respeito? O crescimento dessas plataformas tem a ver com o vício em pornografia? Sendo assim, essas mulheres contribuem para a sexualização feminina? O conteúdo é banalização e romantização do trabalho sexual? 

Para Lorena Caminhas, pós-doutoranda em Antropologia da Universidade de São Paulo, a produção de conteúdo para OnlyFans, Privacy e outros sites tem mais ambiguidades que outros trabalhos plataformizados, ainda que isso não signifique maior facilidade. “As relações são muito mais ambíguas do que a gente vê em outros mercados, então a gente não tem só um mercado que é precário, porque se fosse assim as pessoas não estavam indo em massa para esse mercado. Tem pessoas que ganham muito dinheiro com isso, que têm uma boa vida com isso, mas que ao mesmo tempo, precisam trabalhar muito, não têm segurança quanto a sua imagem, não têm segurança pessoal. Então é muito ambíguo, e isso não é só porque o mercado é assim, mas porque a conjuntura do país também favorece que esse tipo de trabalho seja cada vez mais valorizado”, explica.

“Não é que esteja certo, e não é que o trabalho sexualizado seja a melhor coisa do mundo, é que o nosso mercado de trabalho está totalmente errado. Esse é o ponto. A gente está com um mercado de trabalho completamente sem sentido para a realidade, mas o fato é que as pessoas estão ganhando dinheiro, estão vivendo uma vida que é confortável. E isso, sim, a gente tem que considerar, porque é muito importante viver uma vida que é confortável, ter dinheiro para pagar a escola da sua filha, para ter um carro, para comer a comida que você gosta, poder sair, poder viajar. Isso é muito importante, isso traz qualidade de vida para as pessoas”, afirma a pesquisadora. 

Sany relata que a prostituição lhe deu uma possibilidade de continuar envolvida na Universidade e outros aspectos de sua vida da forma como gostaria. “É um trabalho em que eu consigo conciliar meu tempo com as outras atividades. Hoje eu tenho prazer de estudar porque eu tenho tempo para estudar. Antigamente não tinha. Eu trabalhava em Comércio, então era de segunda a sábado, cansei de perder prova sábado porque tinha que trabalhar. Acho que a maior riqueza que tenho é o tempo. Ter tempo para minhas coisas, para minha família, para meus amigos, para mim mesma”.

Entre outros benefícios do trabalho nas plataformas contra a prostituição tradicional, Caminhas cita uma menor exposição a riscos à segurança física  e valores muito baixos para o trabalho, além da possibilidade de ser amparada pelas regulações das plataformas. Por outro lado, a criação de conteúdo não é acompanhada apenas dos aspectos positivos do ‘home office’, e as criadoras reclamam de um trabalho dobrado.

“A maioria das pessoas que eu entrevistei dedicam realmente muitas horas a esse tipo de trabalho, cerca de 10 horas. Se a pessoa é mais ativa, se ela realmente trabalha só com isso, é umas 10h a 12 horas. E tem pessoas que trabalham menos, mas porque isso é uma renda secundária. O que acontece é que isso aumenta muito a carga de trabalho, a estafa da pessoa, e não é produzindo o conteúdo em si, é gerenciando todo o trabalho que ela teve para ter gente pagando. Então sim, isso cria muita precarização.” explica Caminhas.

Formada no técnico de administração do SENAI antes de ingressar na graduação atual, Sany conta que aplica os conhecimentos da época na gestão e marketing nas plataformas e nas questões técnicas ao redor da produção de conteúdo. Ela conta que em seu curso “Introdução à produção de conteúdo” pela plataforma de educação sexual RATI, ela achou uma forma de dar algumas das recomendações que gostaria de ter recebido há quatro anos, quando começou.

Em uma postagem feita em outubro deste ano, Sany, que usa suas redes como um “espaço de diálogo” para mulheres novas no mercado sexual, comenta que as opiniões de alguns homens que reclamam de não ter acesso aos esses mesmos luxos que as criadoras vai além de um preconceito com a prostituição e se trata de misoginia. 

“É o que eu falo: já que você acha tão fácil, pegue a sua calcinha, abra um OnlyFans e fique rico você também. Não é uma grana fácil? Você tá pegando ônibus lotado porque quer, por puro masoquismo” ironiza. 

Em outra postagem, ela diz que a visão do trabalho em plataformas como OnlyFans e Privacy como algo que está no campo do absurdo só passa a existir pois o controle “escapa” da mão dos homens. 

Em uma entrevista para a revista AzMina, em setembro de 2019, a escritora feminista Silvia Federici afirmou que, para mulheres, sexo sempre foi trabalho.

“Mulheres têm dependido de vender seus corpos porque nós sempre tivemos menos acesso aos recursos do que os homens. Na história do capitalismo, eles sempre tiveram mais acesso a dinheiro, empregos e formas de subsistência. Então nós tivemos que vender não só o trabalho em si, como os homens, mas também nossos corpos”

– Silvia Federici para a Revista AzMina

Para Lorena Caminhas, o “trabalho mais antigo do mundo” sempre foi um mercado muito aquecido, apenas encontrou mais maneiras de atingir públicos diferentes. “Nem todo mundo tem disposição para sair de casa e encontrar uma prostituta, ir num clube de strip ou pagar uma pessoa como acompanhante. Às vezes nem todo mundo tem o dinheiro para investir, a depender do que seja… Quando  esses serviços vão ser mediados pela internet, você já quebra uma parede, a da disposição da pessoa de ir no lugar. Porque já está mais à mão”, diz.

A pesquisadora acrescenta que o formato possibilita a diversificação de conteúdo em comparação à pornografia tradicional, fator que ajuda na capilarização do conteúdo para um público mais amplo. Ainda assim, os dados e depoimentos não mentem: o público ainda é composto majoritariamente por homens cis.

Em 2022, a pesquisa “Características e atitudes sexuais dos usuários do Onlyfans”, realizada por pesquisadores de três universidades norte-americanas, revelou algumas estimativas sobre o público: 63.1% eram homens, 68.9% brancos, 89.5% casados e a parcela de consumidores heterosexuais era de 59%. Segundo dados do site Similiar Web, da empresa de tecnologia de mesmo nome, o país que lidera em número de usuários do aplicativo são os Estados Unidos, com 43.41%, seguido do Reino Unido com 5.87% e Canadá com 4.83%.

Os dados ajudam a explicar o que, para Lorena, é uma outra razão para que o OnlyFans tenha a América Latina como foco de crescimento: a sexualização dos habitantes, em particular das mulheres, desses países. A pesquisadora se refere ao Brasil como um “hub de turismo sexual”.

Os fetiches relacionados a aspectos étnico-raciais por trás do fortalecimento desses mercados crescentes entre mulheres latinas fazem parte de hierarquias que, segundo Bárbara, não deixam de existir mesmo com o rompimento que as criadoras tentam promover com a pornografia, por exemplo, e apenas se reorganizam nas plataformas.

“Eu acho que a pornografia, em si, é muito sobre categorizações. Tem muito esse ponto de expectativas, de estéticas, de um nicho estético, de práticas sexuais correspondentes à pessoa que cria conteúdo. As pessoas que trabalham nas plataformas tendem a se separar da pornografia tradicional, e um desafio é romper com certos scripts que elas reproduzem, que têm tudo a ver com o tipo de pornografia que elas estão criticando. Eu acho que essa contradição e as hierarquias não deixam de existir nas plataformas digitais, mas são reorganizadas nessas plataformas”, diz

Aplicativos como OnlyFans (OF) e Privacy expandiram-se rapidamente no mercado sexual nos últimos anos. Com faturamentos que ultrapassam as centenas de milhões de dólares, aliado ao contexto de crise econômica causada pela pandemia de Covid-19 entre 2020 e 2022, estes se tornaram alternativas concretas no mercado de trabalho.

O crescimento no uso desses aplicativos se dá principalmente em regiões com baixos indicadores econômicos. Na Web Summit Rio, em maio deste ano, a presidente executiva do OF, Amrapali Gan, afirmou que a América Latina é o principal foco de expansão da empresa para o futuro.

Os aplicativos funcionam com base em um modelo de assinaturas mensais. Tanto no OF como no Privacy, o criador de conteúdo retêm 80% do valor da assinatura, que varia entre U$5 e U$50. Os mais bem-sucedidos chegam a ultrapassar a marca do milhão em seu faturamento.

Faturamento anual do aplicativo desde 2018. Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023)

Estas “Sex Techs”, como denomina a pesquisadora da USP Lorena Caminhas, transformam o modelo de negócio do mercado erótico e sexual. A lógica seria semelhante à de pequenos comerciantes, onde a produção artesanal (autonomia e independência) se mistura com práticas industriais (estabelecimento de marca e esforços publicitários).

O trabalho deixa de se limitar à prática erótica e passa a englobar gestão e, principalmente, publicidade. A divulgação através de perfis em outras redes influencia também a relação entre produtores e consumidores. Se torna comum uma postura mais informal e íntima, mantendo o público cativo e o expandindo para além da bolha com a produção de conteúdo mais abrangente e não só o sexual.

Bárbara Mendes aponta que a nova lógica “envolve a obrigatoriedade de se tornar visível em múltiplas plataformas, simultaneamente, para além do OnlyFans. Ele não existe isoladamente, e essa parte do trabalho muitas vezes não é nem vista como trabalho.”

Flávia, 27, nunca tinha se visto como uma mulher sensual. No fim de 2022, quando descobriu o shibari (prática artística-sexual japonesa que envolve técnicas de amarração do corpo), ficou maravilhada. Postava fotos e vídeos do processo, sem muita pretensão, em uma conta no Instagram. Os seguidores queriam mais: começaram a pedir conteúdos mais íntimos, comentavam quão atraente ela é. Foi então que, por diversão, decidiu com o parceiro compartilhar momentos mais quentes no OnlyFans e Privacy, além do Telegram.

Ela conta que, mesmo tendo outro emprego como administradora de uma floricultura e não dependendo do dinheiro dos aplicativos para se sustentar, o trabalho multiplataformas é essencial para quem quer vender. “Às vezes eu não posto nada [no Instagram] e isso é horrível, porque não vende nada. E aí eu tenho que ter tempo de parar, conversar, gravar, sendo que eu tenho outras contas no Instagram, tem o da loja, tem o meu pessoal. E sinceramente eu não sou muito marqueteira, eu já não sou muito de fazer mídia, de ficar conversando. É um trabalho que eu não tenho tanto tempo para me dedicar, porque realmente precisa de dedicação e tempo como qualquer outro trabalho que seja online”. 

A autônoma compara a atividade com a venda de cursos na internet, área que cresceu durante a pandemia com a promessa de ganhos fáceis em setores como o marketing digital. 

“É um trabalho como qualquer outro, qualquer trabalho online de venda de curso, de serviço. Por exemplo, o meu ex era agrônomo e ele vendia um curso de interpretação da análise de solo. O curso dele era todo online, ele gravou tudo em casa e vendia na internet. E era assim: se ele não divulgasse não vendia, se ele não postasse não vendia. E eu vejo que o que eu faço hoje é bem semelhante ao que ele fazia na época. E não era um trabalho sexual, era uma venda online”, diz.

Caminhas comenta que a dependência de outras plataformas para a circulação dos perfis do OnlyFans é uma estratégia de mercado assumida pela plataforma na medida em que “se aproveita de que você já tem uma plataforma onde consegue distribuir conteúdo não monetizado”. Ela acrescenta que “o que essas plataformas fazem é se estabelecer dentro de uma dependência de todo um ecossistema digital”. 

“A plataforma dá a infraestrutura, arranjar consumidores é problema seu”, afirma a pesquisadora. E é justamente esse modelo de negócio que as enriquece, já que basta manter a estrutura do aplicativo. Por esta lente é que pode-se falar de trabalho sexual online dentro de dinâmica de precariedade, já que a maior parte da jornada de trabalho não é bonificada.

A dependência de um ecossistema digital fica evidente na análise de tráfego do aplicativo, em que a maior parte advém de links diretos, por maioria anexados nas redes sociais ou em aplicativos de mensagens como Whatsapp e Telegram. Já especificamente nas redes, o Twitter é o grande destaque.

Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023)

Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023

Todos esses fatores, inclusive, impedem algumas pessoas de caracterizar a própria venda de fotos e vídeos nessas plataformas como uma prostituição. Bárbara aponta que, apesar do trabalho digital possuir uma série de amenizações quando comparado à prostituição tradicional, a cisma entre trabalho sexual on e off-line não é tão explícita.

“Muitas vezes essas pessoas que trabalham nas plataformas não se veem fazendo pornografia ou trabalhando na prostituição. Por ser digital e não ter contato físico, as pessoas talvez vejam como um trabalho mais seguro, o que não deixa de ser verdade. Por vezes também é visto como um trabalho moralmente melhor, o que é bem contraditório. Essa confusão entre categorias acaba desestabilizando a definição de trabalho sexual”, afirma a especialista.

Com propagandas que apresentam a tentadora possibilidade de fazer um trabalho que supostamente exige menos esforço e lucrar em pouquíssimo tempo, as plataformas de conteúdo sexual se vendem com um discurso de libertação e autonomia, sobretudo para as mulheres. 

A ideia de que este é um ofício sem maiores problemas e que rende bastante dinheiro fácil, entretanto, não se sustenta com maior análise. O criador de conteúdo médio no OF lucra 180 dólares por mês no aplicativo e somente 300 contas faturam mais de 1 milhão de dólares por ano. Dados como esses, se entendidos a partir da realidade brasileira, revelam uma situação complexa dos trabalhadores. Na perspectiva desse ofício como fonte de renda para o sustento, a maioria sequer alcança uma média salarial do país.

Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023); Média salarial no Brasil em 2023; Salário mínimo ideial.

Outra falsa proposição é a de que o criador de conteúdo teria uma independência total em sua atividade, tendo controle da experiência e do público. Essa condição só reforça o discurso do modelo de negócio focado em auto-empreendedorismo proposto pelos aplicativos, segundo o qual as empresas seriam apenas facilitadoras que permitiriam ao indivíduo liberdade e autonomia.

A dinâmica das plataformas digitais media as relações entre usuário e fornecedor, o que desestabiliza a sensação de intimidade, grande destratora da prostituição tradicional, e posiciona os atores em um espaço digital que se coloca como “higienizado” pelo design e estímulos estéticos da interação em aplicativo. As empresas se distanciam ativamente da atividade laboral, o que Bárbara reforça ao dizer que “a invisibilização da plataforma como mediadora é o que dá a impressão de que você está fazendo tudo sozinha”.

Também não é difícil encontrar em redes sociais como Instagram, Twitter e LinkedIn comentários e perfis de homens que se colocam como “agentes de marketing” para mulheres em plataformas de conteúdo sexual. O que eles prometem é uma assessoria, um auxílio para desenvolver estratégias e alavancar as compras. Assumem, na realidade, um papel de proxenetas virtuais.

Outro fator que refuta a suposta independência e a “facilidade em ganhar dinheiro” é a influência dos algoritmos. Em paralelo ao trabalho digital como um todo, a dependência do algoritmo torna este trabalho bastante desigual. Muitos produtores não alcançam o sucesso fortemente divulgado e envisionado por estes. A arquitetura das redes e o modo de funcionamento do algoritmo de entrega levam uma lógica de competição para a atividade.

A desigualdade de entrega ainda causa pressões em cima das expectativas estéticas dos consumidores, e pode levar os produtores de conteúdo a focar cada vez mais em nichos de fetiches. Em situações como essa, a pesquisadora acrescenta que “produzir conteúdo explícito acaba sendo uma imposição para você seguir vendendo”.

Para Bárbara, a impressão é que existe mais pluralidade na prostituição virtual. Ainda assim, ela diz que os padrões de beleza continuam a pesar nessa modalidade. “Se eu for comparar com a tradicional, por exemplo, eu acho que a questão da autonomia [nas plataformas] se manifesta muito em uma ideia de auto responsabilização, da pessoa se culpar ou se incumbir de uma responsabilidade por não estar ganhando com o conteúdo. Muitas pessoas relataram problemas emocionais por conta disso”, diz.

O OnlyFans como uma plataforma desigual só fica mais evidente na análise do pagamento feito pela empresa aos criadores, já que 33% está concentrado em 1% das contas. A despeito disso, o dono da empresa, Leonid Radvinsky, recebeu um valor superior a US$ 338 milhões em 2022, o que equivale a mais de R$ 1,6 bilhão, além de ter pago a si mesmo um bônus de US$ 1,3 milhão, ou R$ 6,3 milhões.

Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023)

Em meio à distribuição assimétrica de renda, segundo a Revista “People”, a receita do OnlyFans subiu de US$932 milhões, ou R$4,5 bilhões, no ano de 2021, para US$1,09 bilhão, ou R$5,3 bilhões, em 2022, com crescimento de 22% de lucro acumulado.

Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023)

Também não se deve perder de vista o recorte de gênero quando analisando o mercado sexual. De todos os usuários no OnlyFans, 87% são homens e 60% são heterossexuais. Em contrapartida, os produtores são em sua maioria mulheres, 70%. O que emerge desse fenômeno é a reprodução de lógicas machistas e misóginas, muitas vezes advindas de mercados sexuais mais antigos, como o de audiovisual pornográfico. Segundo Bárbara, “quanto a algumas limitações de autonomia, hierarquias que são alvo de críticas na pornografia tradicional podem atravessar o trabalho nas plataformas também. Essas são, por exemplo, geracionais ou sobre padrões de beleza, novos nichos que forçam a adequação”.

Fonte: OnlyFans User and Revenue Statistics (Ch Daniel, SignHouse, 2023)

O que se evidencia disso é que, apesar de uma lógica de mercado diferente da prostituição tradicional, parte dos problemas e estigmas são continuados em extensão no mercado online. Por isso, falar de precarização por vezes pode ser ambíguo, já que, como indica a pesquisadora Lorena, “continua tão precarizado quanto sempre foi”.

Para a antropóloga, “o mercado sexual sempre foi aquecido, seja mediado por alguma tecnologia, seja por pessoas. Ele só acha mais maneiras de atingir públicos diferentes. O que há, talvez, é uma diversificação dos públicos”.

O termo “uberização” surge de um novo modelo de trabalho inaugurado pelas plataformas semelhantes ao aplicativo de caronas. A nova lógica envolve um grande distanciamento entre o trabalhador e a gerência, já que há uma perda da fisicalidade e uma maior dificuldade em sindicalização, já que o trabalho pode ser completamente individualizado. Todo o funcionamento é apoiado sobre uma base tecnológica e datificada imprescindível.

O sucesso do modelo plataformizado adentrou o mercado do sexo com força semelhante, porém o desenvolvimento deste na área possui diversas nuances próprias.

Lorena Caminhas defende que compreender a expansão dos mercados sexuais e eróticos é o mesmo que compreender a expansão da internet e seus avanços tecnológicos. “Para mim, a internet sempre foi muito movida pelo sexo. Não só comercial, mas muito por ele. Muitas das inovações que hoje a gente usa, como o cartão de crédito para pagar online, foram impulsionadas pelas necessidades da indústria pornô. O sexo é um grande impulsionador do desenvolvimento tecnológico”, afirma.

O trabalho sexual, antes da digitalização, já era permeado por dificuldades. De esforços regulatórios à falta de garantias, os profissionais e as profissionais atuantes na prostituição enfrentavam um ambiente precarizado já durante muito tempo. Essa realidade diferencia totalmente este de outros processos em plataformização. 

A relação entre taxistas e motoristas de Uber, por exemplo, transfere os profissionais de um mercado com legislação e proteções ao trabalhador para um completamente hostil aos seus interesses. Com a prostituição e o atual mercado digitalizado, não há diferença tão marcada.

Lorena explica que a precarização da prostituição é uma constante. “É difícil dizer que está mais precarizado (digitalmente), porque o mercado do sexo é historicamente marginalizado e estigmatizado, sobretudo no Brasil. Não há ponto de sua existência em que esse trabalho não foi precário”.

Há uma frequente circulação entre o trabalho on e offline, com muitas profissionais trabalhando nas duas lógicas. Lorena aponta que, principalmente após a pandemia, quando o serviço presencial foi dificultado, houve uma intensa migração para o app. O processo inverso também é consideravelmente comum, quando produtoras começam no digital e, com o aumento da familiaridade, começam a fazer trabalhos presenciais.

Em outra diferença quanto a plataformização tradicional, o mercado sexual digital traz mais regulação do que existia anteriormente na atividade. Apesar de unilaterais e impostos às produtoras, os contratos e termos de uso dos aplicativos tomam um espaço regulatório inexistente na atividade off-line.

Tertuliana Lustosa, 27, cantora da banda A Travestis e mestranda em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (UFBA), se atraiu pela perspectiva de segurança dos sites em relação às ruas. Mulher trans, ela conta que já fez parte de uma dura estatística brasileira: segundo uma pesquisa feita em 2019 pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 90% da população de travestis e mulheres transexuais no país se envolvem com prostituição por conta de falta de oportunidades. 

Observando pessoas ao seu redor criarem contas em plataformas de conteúdo sexual, Tertuliana sentiu a curiosidade atiçar. Estaria ali uma alternativa para ajudá-la com as questões financeiras sem que precisasse se arriscar tanto? 

“Vender conteúdo na internet para mim pareceu uma coisa mais leve. Eu considero mais leve do que pessoalmente ir e me prostituir, no sentido desse tipo de atendimento ser algo que eu não me sinto muito à vontade para fazer. No Privacy, o meu tipo de conteúdo é o que eu me sinto confortável. Eu não mostro meu órgão genital, por exemplo. São mais conteúdos sensuais, fotos e vídeos me relacionando também, mas só coisas que eu me sinta confortável”, conta.

A cantora explica sua experiência positiva com o Privacy. “Eu adoro a plataforma. Acho que ela é ótima por ser um público majoritariamente brasileiro. Eu me sinto mais à vontade, mais confortável. A única reclamação que eu teria talvez fosse sobre alguns pagamentos que demoram, são 14 dias úteis quando a pessoa paga no cartão, por exemplo. Fora isso, nada”.

A dificuldade no processo de pagamento é algo que Lorena denomina discriminação financeira e entende como mais uma faceta da estigmatização enfrentada pelo mercado do sexo. Houve episódios onde empresas se recusaram a assistir profissionais sexuais, como em 2019, quando o PayPal deixou de fazer transações no site do PornHub, por decisão própria. E em 2021, mesmo o OnlyFans entendeu como certa a decisão de banir conteúdo explícito da plataforma, o que rapidamente foi revisado.

“Garota de programa, garoto de programa, meretriz, messalina, michê, mulher da vida, trabalhador do sexo”. Esses são os sinônimos para “prostituta” catalogados na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), que identifica todas as profissões reconhecidas no país. A prostituição integra essa tabela desde 2002, mas a situação dessa atividade na legislação brasileira ainda é enevoada: no Código Penal, a facilitação ou favorecimento da prostituição são tidos como práticas de natureza criminosa, com penas de dois a oito anos, e não existem leis no Brasil que garantam direitos trabalhistas aos trabalhadores sexuais. 

No Congresso, dois projetos de lei que têm como foco a prostituição se sobressaem: o PL n.377/2011, do então deputado federal João Campos, vice-líder do Republicanos entre 2020 e 2022, que propõe uma modificação do Código Penal para criminalizar a contratação e a aceitação de serviços sexuais. Já o PL n.4211/2012, conhecido como “Gabriela Leite”, do ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro Jean Wyllys, defende a regulamentação da atividade. Ambos foram arquivados em 31 de janeiro de 2019. Entretanto, o primeiro foi desarquivado no mês seguinte, após uma solicitação do deputado João Campos para que todos os seus projetos fossem desarquivados.

Em 2016, a Anistia Internacional publicou um relatório relativo à prostituição, no qual relata violências sofridas por trabalhadores sexuais, tanto de clientes como da polícia, e afirma que a descriminalização é o melhor caminho para esses profissionais. De acordo com a organização, a criminalização dessa atividade “reforça a marginalização, o estigma e a discriminação, podendo negar às pessoas que se dedicam ao trabalho sexual o acesso à justiça”.

No trabalho sexual plataformizado, os direitos são ainda menos contemplados. Para a pesquisadora Bárbara Mendes, a regularização da atividade, tanto em pessoa como virtual, seria a melhor alternativa. “Regulamentação é o ideal. Mas, eu acho que tem uma questão específica desse trabalho: que mesmo pessoas no mercado do sexo não-digital muitas vezes não têm legislação e nem direitos trabalhistas. Então é um problema específico, eu acho que é muito diferente se você pensar em alguns outros trabalhos em plataformas digitais em um análogo deles offline, por exemplo”, declara.

Antes da pandemia, o Onlyfans contava com 20 milhões de usuários. Apenas 12 meses depois, esse número subiu para mais de 120 milhões – um crescimento de 600%. A adoção dessa e outras plataformas tem dois lados: o da liberdade de escolha de como portar o próprio corpo e o da falta de outras oportunidades fora do mercado sexual, sobretudo no período pandêmico. Nos dois casos, muitas vezes, a atividade torna-se sinônimo de sobrevivência. 

Em entrevista ao El País, a acadêmica mexicana Livia Motterle afirmou que quando há um intercâmbio sexual em troca de dinheiro e isso é pactuado, é sempre trabalho sexual.

“A pessoa que entra nessas plataformas busca satisfazer uma fantasia, e a foto realiza essa fantasia. É um trabalho sexual muito reduzido, um fragmento de um mundo muito mais amplo.”

– Livia Motterle ao El País,

Para algumas meninas é difícil admitir, diz a pesquisadora, porque “a sociedade pensa que é algo ruim, isso não é reconhecido como trabalho e elas sofrem o estigma público.”

“É o trabalho da vida delas. Meu contato de pesquisa relatou que sofreu um pouco de violência psicológica na família, ela estudava e tinha vários outros trabalhos simultâneos. Ela passou a ganhar muito mais, a poder trabalhar de casa. Mas, é importante apontar que isso não acontece com todo mundo. Algumas pessoas não conseguem vender seu conteúdo, não conseguem seguir o que eles planejavam fazer. Eu acho que com a popularização da plataforma, houve uma banalização desse trabalho, então muita gente acreditou que era muito fácil vender conteúdo on-line, mesmo que este não fosse explícito”, diz Bárbara.

Além disso, o fato do trabalho ser mediado pela plataforma não faz com que as experiências de quem produz sejam livres de abusos. “Muita gente sem noção me manda mensagem sexual, querendo marcar encontros. Eu digo que não rola e a pessoa insiste. Teve gente que me chamou até de mal educada porque eu não quis sair. E eu falo com todo mundo na maior calma, mas tem alguns caras que são insuportáveis”, relata a autônoma Flávia. 

EDIÇÃO 2022.2

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De que perspectiva você enxerga o que está ao seu redor? A segunda edição de 2022 do Impressão Digital 126, produto laboratorial da disciplina Oficina de Jornalismo Digital (COM 126) da FACOM | UFBA, traz diferentes ângulos jornalísticos sobre o que nos marca enquanto sociedade, especialmente àquilo que fazemos questão de fingir que não existe. […]

Turma 2022.2 - 07/12/2022

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Estudantes relatam dificuldades criadas pelo aumento do valor da passagem de ônibus em Salvador O aumento de trinta centavos no valor da passagem de ônibus em Salvador (R$4,90 para R$5,20), anunciado de maneira repentina pela Prefeitura, entrou em vigor no dia 13 de novembro. Tal medida vem prejudicando o cotidiano dos estudantes, especialmente aqueles que […]

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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Bahia é terceiro estado com maior número de partos em menores de idade

Estado registrou 6.625 partos em mulheres de até 17 anos; especialistas apontam falta de acesso à educação sexual como um dos principais motivadores Defendida por parte da sociedade e rechaçada por outra parcela, a educação sexual nas escolas é um tema que costuma causar polêmica quando debatido. Ainda assim, seu caráter contraditório não anula o […]

Larissa A, Lila S., Luísa X., Patrick S - 07/12/2023

catadores da cooperativa Canore reunidos

Desenvolvimento sustentável

Racismo Ambiental em Salvador e Economia Circular

Entenda como esse modelo de produção une sustentabilidade, cooperativas de reciclagem e a luta contra as desigualdades sociais Em meio à crise das mudanças climáticas, a cidade de Salvador tem registrado temperaturas maiores do que a média histórica, chegando a sensações térmicas acima dos 34ºC. Para combater os efeitos do aquecimento global, organizações e iniciativas […]

Anna Luiza S., Jackson S., Luiza G. e Pedro B. - 06/12/2023

Na imagem, uma mulher de blusa verde segura uma cesta com plantas medicinais em frente a uma barraca laranja que tem outras plantas e bananas

Desenvolvimento Sustentável

Feira une produção e consumo sustentáveis na UFBA

Realizada às sextas-feiras, Feira Agroecológica da UFBA se torna elo de ligação entre pequenos produtores e consumidores em busca de alimentação saudável A Feira Agroecológica da Universidade Federal da Bahia – apelidada carinhosamente de “Feirinha” – é um projeto de extensão do componente curricular “BIOD08 – Comercializando a Produção Agroecológica”, ministrado no Instituto de Biologia […]

Celso Lopez;Daniel Farias;Jade Araújo;Melanye Leal - 06/12/2023