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Do campo aos travesseiros
- 04/05/2016PERFIL Sem andar ou falar, ex-jogador do Flamengo Mário Filipe Pedreira, o Onça, sofre há 13 anos com Mal de Alzheimer e vive hoje aos cuidados da família
Debora Rezende | Foto destaque: Debora Rezende
As pernas que outrora corriam pelos gramados do Brasil hoje repousam em lençóis brancos. Não andam mais. A voz que protestou contra juízes de futebol e nomeou escalações de times está silenciada. Aos 72 anos de idade, Mário Filipe Pedreira, o Onça, já não sabe mais quem é.
No fim da década de 1960, era jogador do carioca Flamengo, onde permaneceu por quatro anos e atuou em 164 jogos. Com a camisa do rubro-negro, Onça fez sete gols. Durão, atuava como zagueiro. Ao longo da carreira, vestiu a camisa de clubes como o Bahia, Fluminense de Feira e Sport (PE). Há 13 anos, no entanto, sua situação mudou. Fora dos campos e estádios, o baiano passa os dias deitado em uma cama na casa de uma das filhas, com a rotina fortemente abalada pelo Mal de Alzheimer.
A doença deu os primeiros sinais quando ele já tinha pendurado as chuteiras. Na época com 60 anos, atuava como técnico em clubes do interior da Bahia. “A vida toda ele jogou bola”, conta a assistente social Carla Muiños, 45, filha do primeiro casamento do ex-atleta. “Meu pai sempre foi muito profissional”. Natural de Santaluz, cidade a pouco mais de 250 quilômetros de Salvador, era no interior que ele morava e trabalhava. Estava casado pela terceira vez e tinha uma filha pequena.
A confusão em atividades corriqueiras do trabalho foi um dos primeiros sinais que a família teve de que as coisas não estavam como deveriam. “Começou a ter um comportamento estranho”, explica a filha e cuidadora de Pedreira. No trabalho e em casa, o pai dava indícios de confusão mental. Fazia escalações estranhas nos times que treinava. Saia com o carro e voltava sem. Passou a juntar lixo.
“Era muito difícil, ele ainda era dono de si”, conta Carla. Onça, apelido que ganhou ainda na época da escola e que o acompanhou na trajetória esportiva, negava que estivesse perdendo a memória.
Ficou sem trabalho. Não teve como sustentar a família. A esposa, mais jovem do que Onça, voltou com a filha pequena para a casa dos pais. “Entrou em um processo difícil de morar só. A gente começou a tentar trazer ele para cá”, diz Carla, que mora com o marido e os filhos em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador. Acostumado com a independência, Onça resistia às tentativas da família de tirá-lo de Santaluz. Fugia, pedia para voltar. Ao passo em que o Alzheimer progredia, a situação do ex-atleta piorava.
“Ele começou com essa coisa de cultuar o corpo”, lembra a filha. Em 2008, depois de muita exposição ao sol em busca de um belo bronzeado, Onça desenvolveu um câncer de pele no braço. Para ele, não passava de uma ferida causada por uma vacina. Tirá-lo do interior para cuidar propriamente da doença não foi simples. “Para conseguir segurar ele aqui foi muito difícil”, conta Carla sobre a recuperação do pai após a retirada do câncer finalmente acontecer.
Complicações no quadro
Em 2010, a família percebeu que já não era mais possível que o ex-jogador continuasse a morar sozinho no interior. “Inicialmente, ele foi para uma casa de idosos, porque é muito difícil para a gente lidar com essa situação”. O lar, em Brotas, tomou conta de Onça por dois meses. Na época, a família pagava R$ 950 de mensalidade. Mas a ideia de deixar o pai aos cuidados de outros não agradava a Carla. “Uma vez eu cheguei lá e ele estava com oito roupas”, relembra.
Trazer o pai definitivamente para casa fez com que a filha precisasse modificar tanto a rotina quanto a própria casa. “A carga maior é para mim”, afirma a cuidadora, que não recebe muita ajuda por parte dos seis irmãos. “Você tem que abrir mão de muitas coisas quando acontece uma situação dessas. É um ser humano que precisa de ajuda, que está totalmente dependente de alguém”.
Pouco depois de chegar na casa da filha, Onça precisou fazer uma cirurgia de vesícula. Ficou no Hospital Português, na Barra, onde pegou uma infecção hospitalar. “Eu pensei que ele não fosse mais voltar para casa”, diz Carla. A complicação fez com que o ex-jogador ficasse 52 dias em coma. “Os médicos deram um diagnóstico de que ele não ia resistir”, ressalta David Félix, 58, genro de Onça. Ao todo, foram 68 dias de internação. Quando voltou para casa, o quadro do idoso ficou mais severo.
Aos poucos, parou de falar. Parou de andar. Repousa, há seis anos, em uma cama no primeiro andar da casa, monitorado por uma babá eletrônica. Todos os dias, recebe o cuidado de uma enfermeira contratada pela família. Nos finais de semana, a filha e o genro cuidam de cada detalhe da sua rotina.
Com as mãos atrofiadas, ele depende da família para colocá-lo na cadeira de banho. Usa quase um pacote de fraldas geriátricas por dia. Vez ou outra, solta um grunhido. Água e comida, batida no liquidificador, são reguladas por horário. No quarto iluminado, em tons de bege, passa seus dias assistindo ao canal de esportes, ao mesmo tempo em que morde a língua – mania que mantém, apesar do avançado estágio de Mal de Alzheimer, desde os tempos de jogador de futebol.
“Até hoje ainda existe muita pesquisa, mas não uma explicação”, lamenta Carla. Aceitar a doença do pai foi desgastante. Muito ligada à figura paterna, a assistente social, que nasceu no Rio de Janeiro quando Onça integrava o elenco do Flamengo, passou por um início de depressão. “O estado terminal do Alzheimer é voltar a ser feto”, opina.
Poucas pessoas ainda o procuram. Na cabeceira da cama, uma foto emoldurada de um de seus encontros com Pelé. Ao lado das fraldas, o acompanha um pedaço da antiga Fonte Nova, mandado para ele na época da implosão.
Leia aqui o que a psicóloga Suzana Graziela tem a dizer sobre o Mal de Alzheimer.