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A perspectiva das torcidas organizadas sobre violência no futebol
BRUNO LUIZ E MATHEUS CALDAS - 31/08/2017Membros de torcidas reclamam de preconceito e crucificam atos de violência
BRUNO LUIZ E MATHEUS CALDAS
O Ba-Vi do dia 9 de abril de 2017 prometia ser um marco. Presidentes de Bahia e Vitória entraram em acordo para que, no primeiro clássico do ano, com mando tricolor, houvesse um setor destinado à torcida mista. No entanto, o efeito esperado foi totalmente o oposto. Membros de torcidas organizadas, suspensas para aquele jogo, entraram em confronto do lado de fora da Arena Fonte Nova. Instantes depois do triunfo rubro-negro por 2 a 1, Carlos Henrique de Deus, de 17 anos, torcedor do Bahia, que não havia ido ao duelo, foi morto a tiros, na Avenida Vasco da Gama, em Salvador. Familiares atribuíram a morte à rivalidade de torcidas. O que era para ser o clássico símbolo da união entre torcedores, marcou o último Ba-Vi com torcedores dos dois clubes nos estádios. Uma recomendação expedida pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), acatada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), estabeleceu que, desde então, todos os embates entre Leão e Esquadrão serão com torcida única. A medida causou polêmica. As organizadas defendem que a ação não é efetiva e, além disso, reclamam de sofrer preconceito e pagarem pela atitude de poucos.
Um dos organizados que comungam dessa opinião é o presidente da Torcida Organizada Bamor (TOB), Luciano Venâncio – a maior dentro do Esporte Clube Bahia. Para ele, as brigas entre torcedores acabam agregando uma imagem ruim às agremiações. “Eu me sinto mal porque não é isso que a gente quer passar. O nome da torcida já diz tudo: Bahia com amor. A ideologia da gente é vibrar, cantar, viver pelo Bahia e para o Bahia”, lamenta.
Também membro da Bamor, o associado Rodrigo do Carmo relata sentir preconceito até mesmo de pessoas mais próximas, como amigos e vizinhos. Para ele, o prejulgamento vem por conta de pessoas que entram em confronto, mas não são, necessariamente, vinculadas às torcidas organizadas. “Eles dizem que torcida organizada é coisa de marginal, de vagabundo. E não é isso. Acontece que as brigas mancham. A minoria mancha a maioria. A Bamor tem advogado, jornalista. Aqui tem pessoas de bem”, defende.
Pelo lado rubro-negro, o torcedor Jorge Tadeu também sente os olhares preconceituosos quando veste a camisa com o símbolo de sua organizada, a Pavilhão Jovem, uma espécie de dissidência da Torcida Uniformizada Os Imbatíveis (TUI), maior do Vitória. “Se você tiver com camisa de torcida organizada, eles generalizam muito por baixo, como se todos fossem daquela forma, todos pensassem da mesma forma. E, na verdade, não é o que queremos que aconteça com nossa torcida”, lamenta.
Para Venâncio, a imprensa tem papel crucial na construção do imaginário de violência que envolve as organizadas. Ele argumenta que parte do preconceito vem do direcionamento dado nas coberturas sobre os confrontos entre torcedores. E ele ressente-se desse tratamento. “Violência vende”, reclama.
Procurada pela reportagem, a TUI não teve nenhum representante encontrado para falar sobre o tema.
Histórico de confrontos
Estar a par de brigas e provocações faz parte do cotidiano dos membros de torcidas organizadas, por mais pacífica que a pessoa seja. Tadeu admite presenciar confrontos desde o início dos anos 2000, quando conheceu o universo das agremiações. Ele relata que, para alguns colegas, capturar um símbolo de uma torcida rival é uma espécie de troféu. No entanto, hoje em dia, os “prêmios” estão ficando mais caros. Muitos chegam a pagar com a própria vida. “Já presenciei várias correrias. Era diferente antigamente. Era mão com mão, pedra com pedra. Hoje não. É pau, é facada, é tiro. Então, descambou. Antigamente, o troféu [da briga] era uma camisa da torcida rival. Hoje, é uma vida”, conta.
Por ser o porta-voz da Bamor, Venâncio se diz mais maduro nos dias atuais e, por conta disso, tenta ter uma postura mais serena em momentos de tensão. No entanto, ele admite já ter sido punido por uma briga dentro do estádio. O presidente da torcida tricolor concorda ter recebido a punição adequada, uma vez que a Bamor não recebeu nenhum tipo de sanção.
O mandatário da Bamor defende que medidas sejam tomadas apenas contra quem se envolveu nos confrontos, e não em detrimento das instituições. “Eu vi um rapaz fumando um cigarro na arquibancada, pedi para ele apagar, ele não apagou e, infelizmente, a gente entrou em vias de fato. Peguei seis jogos de punição. Foi correto. Eu sou contra pegar um grupo de uniformizados e punir a instituição”, conta.
Apesar da configuração dos clássicos Ba-Vi com torcida única, a maioria das brigas e confrontos acontece longe dos estádios. Com isso, fica difícil para as diretorias controlarem o ímpeto dos torcedores. “Às vezes, não há nenhum tipo de jogo, mas as pessoas estão reunidas fazendo um churrasco, acontece uma briga e a instituição Bamor é punida”, brada Venâncio.
A prova disto, na visão de Rodrigo, é que as tensões nos arredores dos locais em que as partidas são realizadas vêm diminuindo. Há um controle cada vez maior da polícia para conduzir os torcedores antes e depois dos jogos. “Isso aí está acabando mais. Quando tem clássico, as torcidas visitantes chegam bem cedo ao estádio e saem bem depois do jogo, para evitar este tipo de conflito”, contrapõe.
Segundo Tadeu, as medidas tomadas pelas instituições para coibir os atos de violência têm sido efetivas. Ele cita como exemplo o trabalho do Batalhão Especializado em Policiamento de Eventos (BEPE), da Polícia Militar. Criado em 2012, o grupamento atua realizando a segurança em partidas de futebol, além de outros grandes eventos na capital baiana. Com um trabalho que “pega pesado”, na avaliação do dirigente da torcida rubro-negro, o BEPE tem traçado boas estratégias para evitar confrontos entre integrantes de torcidas rivais. “Nós somos registrados no BEPE. Tem reuniões. A gente vai participar do projeto Torcida Legal, que o BEPE está convocando. Toda vez que há um clássico há reunião no QG deles. A gente sempre recebe instruções. Eles fazem uma prevenção muito grande, muito rigorosa. Então, a gente já tem um diálogo melhor com o BEPE”, relata.
Torcida única gera divergência
A recomendação do promotor de Justiça do Consumidor, Olímpio Campinho, de instituir a torcida única nos clássicos Ba-Vi gerou controvérsia. A avaliação unânime entre os três torcedores ouvidos pelo ID 126 é de que a medida acaba desagregando ao espírito esportivo do mais tradicional embate do futebol baiano. No entanto, para Tadeu, a intervenção do MP-BA era necessária. “Eu acho válido, por enquanto, fazer essa separação um pouco, até fazer a poeira baixar. É preciso alinhar todo mundo em um mesmo pensamento”, defende.
Já na avaliação de Venâncio, com a torcida única, o Brasil deixa de “assistir à festa” existente no clássico. “É um carnaval, as torcidas fazendo festa nas arquibancadas. Com a torcida única, fica meio apagado o clássico. Quem acaba perdendo é o clássico, somos nós que gostamos da festa”, lamenta.
Para ele, entretanto, as torcidas possuem, sim, sua parcela de culpa na construção da imagem quase generalizada de que elas são violentas. O dirigente da Bamor afirma que as agremiações podem tomar iniciativas para reduzir a quantidade de confrontos. Uma delas é realizar uma triagem mais rigorosa daquelas que buscam se associar. “Precisamos buscar os líderes de bairro, saber quem está representando as torcidas. Buscar o cadastro dos associados, fazer triagem de quem é a pessoa. E sempre tentando colocar o real do que a torcida representa para o clube para cada um. Cada um que veste a camisa tem uma responsabilidade enorme de representar o clube. Muitos vestem a camisa da torcida e pensam que pode tudo”, defende.
“Isso a imprensa não mostra”
Enquanto a credibilidade das organizadas se esfarela junto à sociedade, elas tentam vender uma imagem diferente daquela que a população se acostumou a comprar. Luciano Venâncio fala sobre o que, segundo ele, a imprensa prefere não mostrar: os projetos sociais tocados pela Bamor. Segundo o dirigente da maior torcida do Bahia, a instituição, a despeito das confusões em que recorrentemente se vê envolvida, tem um “importante papel social”. “Um deles é com um trabalho de percussão. Aprendendo a tocar, os membros movimentam a mente, saem de várias situações de risco na sociedade. A parte social que a gente vem fazendo sempre é entrega de alimentos em instituições de caridade. Fazemos isso mensalmente”, destaca.
Do lado do Vitória, a Pavilhão Jovem também busca realizar trabalhos sociais. “Tem campanha do agasalho. Oferecemos também alimentos para moradores de rua, fazemos doação de sangue para o Hemoba. A gente sempre está promovendo algo em prol das pessoas que necessitam mais que a gente”, explica.
Batalhão especializado tenta conter violência
Para frear o aumento dos índices de violência entre as torcidas no estado, foi criado, em 2012, o Batalhão Especializado em Policiamento de Eventos (Bepe). Determinação da Fifa para cidades que sediaram a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, no caso de Salvador, o grupamento acompanha, desde então, os passos das organizadas, sobretudo em dias de clássico.
De acordo com o comandante do Bepe, tenente coronel Saulo, o acompanhamento das atividades das agremiações começa pela internet. “Monitoramos as páginas das torcidas. Às vezes, elas marcam alguns encontros em pontos da cidade para se confrontar. Nisso, a gente vai monitorando durante a semana que antecede o jogo e vamos repassando para outras unidades de polícia darem apoio”, explica.
Praticamente nada pode deixar de passar pelo crivo do batalhão. Todo ano, as torcidas organizadas precisam disponibilizar o cadastro de todos seus associados, conforme previsto no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado com o Ministério Público da Bahia (MP-BA) e revisado anualmente. Antes dos jogos de maior preocupação, são marcadas reuniões entre membros da torcida, Bepe, Polícia Civil, PM e Comando de Operações Especiais. “Fazemos a busca pessoal com vistas a questão de drogas, armas e armas brancas, além de fogos de artifício. Conduzimos todos eles [torcida do time adversário] ao estádio com previsão de duas horas de antecedência, para evitar confrontos”, conta o tenente coronel. Na tentativa de evitar embates, as torcidas ficam em espaços separados no estádio. Ao término do jogo, os torcedores do time rival ao que possui o mando de campo só deixam o local após a saída da torcida do clube da casa.
“Torcedores avulsos têm receio de estar perto das torcidas organizadas. O que move elas, pelo menos o que a gente vê no Brasil, é a violência, até por uma questão de demonstrar poder”, diz o comandante do Bepe o tenente coronel Saulo
Desde a criação do Bepe, as maiores torcidas de Bahia e Vitória já receberam algumas punições. A Bamor chegou a ficar 180 dias suspensa dos jogos, em 2016, no Campeonato Brasileiro, a maior sanção imposta pelo grupamento. No Baiano, levou sete punições. Os Imbatíveis, por sua vez, ficaram de fora dos estádios por 30 dias, também no Brasileirão. Em um jogo entre Vitória e Vasco, a TUI hasteou, nas arquibancadas do Barradão, uma bandeira de um grupo organizado do Flamengo, maior rival vascaíno. A atitude é vetada pelo TAC.
Sobre o fato de as punições serem mais para as instituições do que circunscritas àqueles que participaram dos atos de violência, alvo de reclamação de Luciano Venâncio, presidente da Bamor, Saulo afirma que isto ocorre por uma postura das próprias organizadas, que muitas vezes se negam a fornecer dados de torcedores. Nós convocamos os líderes das torcidas e pedimos que eles apresentem documentos com o nome dos torcedores. Damos prazo para eles apresentarem esse documento. E, como eles não apresentam, e isso é cultural, uma questão de ética deles, para não ficarem como ‘entregões’, então a instituição é punida”, relata.
Na tentativa de estreitar as relações com as torcidas, o Bepe criou o programa Torcedor Legal. O objetivo é fornecer a torcedores noções de direito, lei penal, informações sobre o Estatuto do Torcedor e do TAC firmado com as organizadas, para que os integrantes delas fiquem cientes do que podem ou não fazer. “A torcida vai disponibilizar alguns membros deles para passar um dia tendo várias noções dessas noções, para que a gente tente socializar os indivíduos a não participarem destes atos violentos. Ao fim, ele recebe um adesivo de que participou do projeto para colocar na camisa do time e nós poderemos identificá-lo no estádio”, explica o comandante do Batalhão.
E, enquanto as organizadas reclamam da torcida única, Saulo afirma que os chamados “torcedores avulsos”, não vinculados a nenhuma agremiação, têm elogiado a medida. Segundo o tenente coronel, após a recomendação do MP ter sido expedida, o número de torcedores nos estádios aumentou, pois eles se sentem mais seguros ao saberem que a possibilidade de conflitos violentos entre rivais diminui.
Para Saulo, as organizadas passam uma má impressão para os demais torcedores que frequentam os jogos de futebol. “Torcedores avulsos têm receio de estar perto das torcidas organizadas. O que move elas, pelo menos o que a gente vê no Brasil, é a violência, até por uma questão de demonstrar poder”, argumenta. No entanto, ele vê importância na presença de qualquer torcida nos estádios e crê que esse cenário pode ser melhorado. “É uma tentativa nossa que eles mudem, pois as torcidas fazem parte dos jogos de futebol. A torcida faz com que os jogos fiquem vivos. É importante que os torcedores das torcidas organizadas aprendam que aflorar os sintomas de derrota ou vitória não podem descambar em violência”, destaca.
Brasil: o país da morte em torcidas organizadas
A virulência nos confrontos entre os torcedores é algo que preocupa no mundo, sobretudo no Brasil. O país é onde mais se morre no mundo em decorrência dos embates. A informação é do sociólogo Maurício Murad, professor da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), que contabiliza as mortes no futebol desde 2012. A falta de punição é algo que contribui para a reincidência dos caçadores de briga. Segundo dados do Ministério dos Esportes, apenas 3% dos processos de violência no âmbito esportivo terminam em condenação.
Mas quando o quadro em relação à violência nas organizadas se agravou no país? Segundo um estudo realizado pelo sociólogo Carlos Alberto Máximo Pimenta, que tem um mestrado sobre o tema, foi a partir da década de 80 que o comportamento do torcedor mudou consideravelmente. “Isso se deu pelo surgimento de configurações organizativas com característica burocrática/militar, fenômeno essencialmente urbano que cria uma nova categoria de torcedor, ou seja, o chamado ‘torcedor organizado’”, diz o autor no artigo “Violência nas torcidas organizadas de futebol”.
O especialista aponta também que a gênese destes agrupamentos está no fim da década de 60 para o início da década de 70, em um contexto de crescente desenvolvimento econômico, desarticulado das bases sociais. Com isso, a violência entre as agremiações não está separado dos aspectos político, econômico e socioculturais vividos nas relações individuais e grupais na sociedade brasileira contemporânea.
Ainda segundo Pimenta, é comum se atribuir como uma das causas da violência entre torcedores questões de classe social ou fatores estritamente econômicos. Ele lembra que as torcidas são compostas pelos mais diversos tipos de pessoas, de todas as classes e com diferenciado poder aquisitivo.
O sociólogo, no entanto, chega a três fatores que podem explicar essa situação. “A juventude, cada vez mais esvaziada de consciência social e coletiva; o modelo de sociedade de consumo instaurado no Brasil, que valoriza a individualidade, o banal e o vazio; e o prazer e a excitação gerados pela violência ou pelos confrontos agressivos”, enumera.
Enquanto os líderes das organizadas reclamam de preconceito, os números da violência e medidas tomadas pelo poder público mostram que os torcedores não associados têm motivos que justifiquem o medo de comparecerem aos estádios. No entanto, todos tentam se reunir em torno de uma só causa: a paz no futebol.