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Adultos autistas: desafios e invisibilidade
Ana Carolina Generoso e Jamile Roseira - 14/12/2022Série coreana sobre advogada autista atinge recorde de audiência na Netflix e incita debates sobre representação, neurodivergência e respeito
A série sul-coreana “Uma Advogada Extraordinária”, lançada no Brasil pela plataforma de streaming Netflix, atingiu recordes de audiência impressionantes ao redor do mundo e incitou uma nova discussão, dentro e fora das redes, sobre os desafios enfrentados por adultos neurodivergentes na sociedade. O sucesso da série levou a produtora Astory a renovar o programa para uma segunda temporada em 2024.
O drama acompanha a vida de uma jovem no espectro autista chamada Woo Young Woo, recém-contratada por um grande escritório de advocacia. Ela é apaixonada por baleias e pelo campo do Direito, odeia roupas com etiqueta e barulhos altos, come kimbap todos os dias e leva tudo o que é dito ao pé da letra.
Os desafios profissionais e interpessoais enfrentados pela advogada fictícia conquistaram o coração do grande público. Apesar disso, alguns profissionais e pais com filhos autistas criticam a série por reforçar clichês da mídia mainstream que associam o autismo, de maneira redutora, à genialidade. O argumento é fundamentado pelo fato de que, percentualmente, apenas uma minoria de pessoas no espectro é superdotada.
Além da protagonista Woo Young Woo, “Uma Advogada Extraordinária” apresenta os desafios e conquistas de outras personagens com graus variados de Transtorno do Espectro Autista (TEA), ampliando a nuance do debate e das reflexões em torno do preconceito e da discriminação, bem como das limitações impostas pela sociedade às pessoas autistas.
Para entender as questões sociais que moldam, e, por vezes, limitam, a qualidade de vida da maioria dos adultos neurodivergentes na sociedade, é preciso, primeiro, se familiarizar com alguns termos utilizados comumente no assunto.
O autismo é uma diversidade de neurodesenvolvimento vitalícia que influencia a forma como a pessoa interage e se comunica com os outros e experimenta o mundo ao seu redor. Produtos culturais, como a série “Uma Advogada Extraordinária”, têm provocado grande interesse no público neurotípico, o que tem impulsionado a visibilidade de ativistas no espectro que lutam para desmistificar estereótipos e combater a discriminação, como a influenciadora brasileira Talita Vieira (@atalitavieira).

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Desconstruir o preconceito também tem sido uma batalha no campo científico. Um artigo publicado na revista Nature Reviews Psychology, em setembro de 2022, por uma equipe de pesquisadores autistas e não-autistas, intitulado “Uma abordagem de capacidades para compreender e apoiar autistas na vida adulta”, propõe uma maneira alternativa de olhar para o TEA dentro do campo da pesquisa.

Segundo os autores, a maioria dos estudos científicos convencionais são conduzidos sem considerar ou incluir, de maneira expressiva, as opiniões e as perspectivas de pessoas no espectro. Eles alertam que ignorar a vivência e o lugar de fala dos próprios autistas na hora de elaborar o viés da investigação aumenta as chances de resultados serem mal interpretados e de se chegar a conclusões enganadoras.

Atualmente, um número crescente de adultos estão se auto-identificando como autistas sem um diagnóstico profissional, inclusive em países economicamente desenvolvidos. Existem dois principais motivos para esse fenômeno: a barreira financeira para acessar neurologistas e psicólogos e a dificuldade de encontrar profissionais de saúde capacitados, de fato, para identificar TEA em adultos. E pior, mesmo quando o indivíduo tem o diagnóstico formal, a pesquisa mostra que ele tende a receber nenhum ou apenas o mínimo suporte adequado.
A razão para isso é que durante décadas, a ciência se voltou, predominantemente, para investigar o autismo em crianças, gerando uma percepção enviesada de que o transtorno se tratava de uma deficiência da infância e juventude. “O resultado é uma carência substancial de compreensão sobre as oportunidades e desafios que adultos autistas enfrentam para construir seus futuros, alcançar seus objetivos e viver de maneira satisfatória e plena”, dizem os pesquisadores.

A pesquisa aponta que pessoas diagnosticadas na fase adulta reportam características autistas mais intensas e menor qualidade de vida e de saúde mental, quando comparadas à autistas diagnosticados na infância.
Os estudos voltados para o autismo, geralmente, estabelecem como critério de qualidade de vida alcançar um padrão de metas que refletem os anseios da sociedade neurotípica, independentemente se essas metas são consideradas importantes pelos próprios adultos autistas.
“Por exemplo, um autista que é altamente dependente dos outros para seus cuidados pessoais — um resultado considerado como ‘ruim’ de acordo com os critérios padrão — pode, entretanto, se sentir feliz e aproveitar uma boa qualidade de vida de acordo com seus critérios subjetivos. Já uma outra pessoa autista que não tem tamanha dependência — um resultado considerado como ‘bom’ — pode sofrer para navegar pelo mundo e se sentir distante das outras pessoas. Abordagens que se baseiam em critérios definidos por pesquisadores, portanto, acabam tendo uma compreensão limitada e correm o perigo de não conceder a dignidade, a agência e o respeito que as pessoas autistas merecem”, conclui a pesquisa. A investigação realizada com base nos critérios de capacidade de Martha Nussbaum comprovou que, ao contrário dos estereótipos, as pessoas no espectro têm grande potencial para se desenvolver bem no que diz respeito à emoção, afiliação, brincadeira, conexão com outras espécies, razão prática e controle sobre seu próprio ambiente. Já áreas como saúde física e integridade tendem a ser restringidas por uma gama de desvantagens sociais e econômicas impostas pela sociedade a adultos autistas.


Para aprofundar no tema e dar visibilidade aos baianos e baianas que se encontram no espectro, entrevistamos a designer Marcela Cristina Miranda de Almeida (29), via WhatsApp.
Você pode conferir a entrevista nesse link