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As lições de Montreal: como foi a última edição do Fórum Social Mundial
Sérgio Loureiro - 31/01/2018Salvador receberá, no mês de março, entre os dias 13 e 17, o Fórum Social Mundial (FSM). Com parceria fechada com a Universidade Federal da Bahia, o Fórum será alocado nos campi da Ufba, mas com o objetivo de estender o alcance de suas atividades e ideias à toda comunidade local. O tema central desta edição do FSM será “Povos, Territórios e Movimentos em Resistência”. O intuito é incluir a participação dos mais diversos movimentos sociais e individuais como protagonistas na construção do Fórum.
Criado em 2001 em contraposição ao Fórum Econômico Mundial que aconteceu em janeiro, em Davos, na Suíça, o Fórum Social Mundial orgulha-se de não ter interferência de empresas, apenas de iniciativas (organizações) da sociedade civil. Sua trajetória deu início em Porto Alegre. Desde então, o caráter mundial se tornou ainda mais forte, e o Fórum já “visitou” países como a Índia, o Paquistão, a Tunísia (por duas vezes) e, em agosto de 2016, o Canadá.
Esta última, inclusive, chama a atenção por ter sido a primeira vez que um país do norte (geográfico e economicamente falando) recebeu o Fórum Social Mundial. Muitos são os fatores que nos levam a intuir um caráter inovador à esta edição. Porém, como tudo que essencialmente é novo tropeça na inexperiência, não foi diferente com os canadenses.
Organizado e protagonizado pela juventude canadense, o Fórum Social Mundial em Montreal recebeu críticas e elogios dos brasileiros que lá estiveram. Entre eles, Damien Hazard, francês radicado na Bahia e representante da Associação Brasileira de ONGs (Abong) no Conselho Internacional do FSM. Para ele, o aspecto positivo da edição Montreal é que os organizadores tinham uma lógica voltada para a mobilização de jovens. “Do ponto de vista da construção, foi um Fórum diferente dos outros. Pode-se dizer que foi inovador na tecnologia e na grande presença de jovens”, relata.

Juventude toma as ruas em passeata no FSM 2016 (Damien Hazard / Reprodução)
No entanto, Damien conta que a divulgação do FSM não foi efetiva e problemas com a locação do Fórum dificultaram a ressonância de seus ideais. “Não tivemos lugar para a expressão da nossa solidariedade aos povos curdos e palestinos, ficávamos apenas nos auditórios da universidade. Então acabou sendo algo fechado às universidades, sem adesão popular. Teve menos gente do que na Tunísia, algo em torno de 35 mil pessoas [a metade do que no país africano]”, afirma.“Eles trouxeram temas mais a respeito da juventude, mas não houve o conteúdo político típico do FSM, com a tradicional questão das lutas de classes, e sim uma vertente mais cidadã”, conclui.
A secretária nacional da mulher do PCdoB, Liège Rocha, também esteve presente em Montreal e acrescenta mais sobre a locação destinada ao grupo brasileiro. “A universidade onde nos colocaram para fazer as atividades estava realizando uma pesquisa com utilização dos drones sobre a criminalização dos movimentos sociais”, denuncia. Este fator teria criado um clima desfavorável no ambiente.

Delegação brasileira durante abertura do Fórum Social Mundial 2016, em Montreal (Damien Hazard / Reprodução)
Na opinião de Liège, que esteve praticamente em todas as edições do Fórum Social Mundial (menos em Nairobi, em 2007, e na Índia, no ano de 2004), a edição em Montreal pode ser considerada como a mais “fraca” das últimas edições, por problemas na organização.“É o pior exemplo das edições do Fórum porque foi organizada por uma juventude que não é organizada em nenhum movimento social. Não houve uma articulação com os vários segmentos sociais. Então a gente perguntava quem estava organizando e eles não sabiam dizer, eram ‘pessoas’”, desabafa.
Outra queixa de Liège é a ausência dos povos ameríndios do Canadá, que constituem a cultura originária canadense, na participação das atividades do Fórum. A valorização destes povos é uma das bandeiras levantadas pelo evento, como acontece em edições aqui sediadas. A respeito da mobilização social, Liège também lamenta a pouca mobilização popular, durante as atividades do FSM. “A divulgação foi fraca, quase não houve visibilidade. Os canadenses nem sabiam do que e o que estava acontecendo”, relata.
Já Rita Freire, integrante do conselho internacional do Fórum, vê com bons olhos a experiência vivida em Montreal e espera ter deixado frutos para o futuro. “O principal legado foi a formação do coletivo de jovens, lá no Canadá, que a partir de agora passa a acompanhar e fazer a ponte com o FSM”. Ela faz questão de lembrar que “o fórum não muda a política. Ele muda as pessoas que vão mudar a política. Nosso intuito é fortalecer as pessoas e os movimentos para que eles sejam a diferença”, e por isso vê com bons olhos tal legado.

Assembleia em defesa da democracia no Brasil e na América Latina, ocorrida no FSM 2016 (Damien Hazard / Reprodução)
Damien segue a mesma perspectiva de Rita. “O legado foi de buscar maiores articulações com os jovens que são a sociedade civil atuante, os estudantes, que desde 2010 lutam contra os retrocessos democráticos e configuram as novas mobilizações, como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street e as manifestações no Brasil”, pontua.
Problemas à vista
Os relatos de memórias podem ser diferentes: há quem tenha gostado e quem tenha seus descontentamentos com o que aconteceu em Montreal. Há, entretanto, um discurso uníssono a respeito do que, apontado pelos entrevistados, foi o principal problema: a emissão de vistos por parte do governo canadense.
Segundo o relato de Rita Freire, o principal problema foi que o governo canadense não liberou muitos vistos e isso deixou as organizações preocupadas por ter prejudicado a participação dos países do sul. Além do mais, países do hemisfério sul – principalmente os de origem africana -, encontraram dificuldades na hora de conseguir a liberação de entrada no país, pois tiveram seus vistos negados.
Sucesso na Tunísia
Nas duas oportunidades em que o Fórum Social Mundial desembarcou na Tunísia, o país passava por dificuldades. Ambas aconteceram em momento delicado: na primeira, pela destituição do ditador Ben Ali, durante a Primavera Árabe, e a segunda pelo ataque ao Museu do Bardo, que matou 22 pessoas no dia 18 de março de 2015.

Marcha de abertura do Fórum Social Mundial 2015, na Tunísia (Carlos Latuff / Divulgação)
Apesar disso, Liège relembra da união entre os povos africanos, algo que, para ela, é tão marcante que se tornou símbolo do evento. “Na Tunísia teve caravana de toda a África para participar, então você via uma mobilização muito grande. Teve gente do Brasil que desistiu de ir por medo dos atentados, mas acabou perdendo, porque o Fórum foi um sucesso”, conta
Liège faz questão de lembrar que o FSM é um espaço privilegiado no cenário mundial, garantindo a articulação internacional e a troca de experiências dos segmentos sociais. Para ela, o principal legado de todas as edições – e do próprio FSM – é lembrar as pessoas de que é importante continuar lutando por suas causas.
Sobre o desafio de organizar um evento da magnitude do FSM, Liège explica que tudo é feito com carinho e atento aos valores primordiais do Fórum: a igualdade e a diversidade. “Criamos um grupo de dez organizações para definir os critérios para seleção dos movimentos na hora de mandar nosso pessoal [para edições internacionais]. Nós contemplamos a diversidade e a amplitude do movimento, essa é a nossa preocupação. Nosso desafio é esse, preservar nossos valores, sendo visando o respeito às diferenças”, conta.
As lições de Montreal
Em experiências vividas e planejadas tão intensamente, no saldo final sempre se consegue obter algum tipo aprendizado. É assim com quem vive e faz do Fórum Social Mundial parte de sua essência. Portanto, não é exagero dizer que mesmo com os problemas – comum a uma organização do tamanho e do porte do FSM -, Montreal estará presente em Salvador, na organização deste novo Fórum.
“O grande desafio do Fórum é sempre se renovar e olhando por esse ponto [a edição do Canadá] foi uma experiência positiva. Eles tentaram uma coisa interessante que foi fazer um assembleia de convergência das convergências, que é a tradicional finalização do Fórum. A gente, inclusive, está se inspirando do momento final de Montreal, em seus erros e acertos, para fazer aqui em Salvador”, revela Damien, que faz questão de lembrar que “o Fórum não é um evento, e sim um processo”.