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“As pessoas precisam de muito mais do que uma seringa”, afirma Dr. Tarcísio
- 15/07/2013As ações de redução de danos ainda enfrentam obstáculos como a falta de comprometimento da gestão pública com o atendimento eficaz ao usuário
Luana Oliveira e Tayse Argôlo
O médico psicanalista Tarcísio Matos de Andrade foi um dos precursores das ações em redução de danos na capital baiana quando estas começaram ainda no início da década de 1990. Hoje, como coordenador geral do programa de redução de danos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tarcísio aponta inúmeros problemas enfrentados pelo programa, como o descaso do governo municipal com a saúde pública dos dependentes químicos e pacientes com problemas psiquiátricos.
Impressão Digital 126 – O senhor é um dos precursores nas ações de redução de danos em Salvador. Como essas ações começaram?
Tarcísio Matos de Andrade – Quando se iniciou no início da década de 1990, a redução de danos era vista como uma ação específica, como a distribuição de seringas para usuários de drogas injetáveis ou dar cachimbo para pessoas que usavam crack. Era uma medida concreta de saúde. Como os usuários são estigmatizados, eles não procuram esses serviços dentro das unidades de saúde, então é preciso ir às ruas para chegar até elas. E neste contato se descobriu pessoas com demandas enormes e com histórias de vida bastante sofridas. Descobriu-se que as pessoas precisam muito mais do que de uma seringa. Redução de danos, então, não podia se limitar a fornecer utensílios, teria que ser mais que isso.
ID 126 – Como se dá, então, essa aproximação com os usuários nas ruas?
T.M.A – Para que estabelecêssemos uma relação de confiança com os usuários, ela tinha que ser horizontal, olho no olho, com a mesma linguagem. Não poderia ser no modelo do tratamento médico, em que eu é que sei o que ele precisa. A pessoa que usa droga parte da ideia de que é ela quem usa e, portanto, de que é ela quem sabe se a droga é boa ou ruim. Em geral, o sujeito age na defensiva. Vive em situação de rua ou sofre muita violência, então ele não tem porque confiar nas pessoas. Você precisa se apresentar da forma mais horizontal possível. Isso se aproxima do método educacional de Paulo Freire, o que não tem em nada a ver com as práticas de saúde. Você tem que ser capaz de olhar o indivíduo como um igual, que precisa ser visto em todos os seus aspectos e construir junto uma solução.
ID 126 – Existe uma capacitação do profissional de saúde para estabelecer esse contato com o usuário?
T.M.A – Nós tínhamos um projeto com a prefeitura, mas que não funciona desde dezembro de 2012, e que se destinava a capacitar a atenção básica. A meta deste projeto era atender 250 agentes comunitários por ano, 40 enfermeiras e também outros profissionais. Recebe-se um treinamento, informações de porque as pessoas usam drogas, aspectos legais relacionados ao uso, aspectos socioantropológicos. Enquanto universidade, nós fizemos a nossa parte. Mas nós tivemos uma gestão municipal desastrosa. O plano de governo foi de uma fragilidade imensa no sistema de saúde. Mais importante do que prover um curso de capacitação, é fazer um acompanhamento nas unidades capacitadas e buscar um retorno junto aos agentes. Mas quando voltávamos lá, as unidades estavam fechadas, funcionários tinham terminado contrato, estavam em greve ou tinham sido transferidos para outra unidade distante. Um descontrole absoluto da gestão municipal! Por conta disso, nós não conseguimos avançar como gostaríamos. A essa altura, Salvador já deveria ter toda sua rede básica capacitada pela faculdade de medicina. Nós lutamos por isso ao longo de seis anos e não conseguimos. Quando entrou essa gestão municipal, que é uma gestão que temos expectativa de algo mais organizado, estávamos com expectativa de que o projeto fosse continuar. Não sei qual será a política de atenção ao uso de drogas do município, mas até agora não teve continuidade.
ID 126 – O senhor acredita em uma solução para o problema do uso das drogas?
T.M.A – Não existe o fenômeno das drogas como as pessoas engrandecem. A droga é um problema de saúde pública que interfere na saúde das pessoas como qualquer outro problema. Mas a gente vai resolver a atenção ao uso de drogas quando ela fizer parte da atenção básica e for considerada uma prática de saúde igual às outras, do mesmo jeito que você cuida de pessoas com diabetes ou hipertensão. Então você passará a ter toda uma rede cuidando dessas pessoas.
O serviço especializado para atender dependentes químicos deveria ser apenas para os que estão em situações mais complexas e graves. Dentro de uma visão que está no papel em lei, o usuário de drogas comum deve ser atendido na saúde básica. Uma pessoa que faz uso exacerbado vai para os CAPS, e um com maior gravidade vai para situações de internação num hospital psiquiátrico – isso no papel, porque na prática é diferente. O que complica a situação dos usuários são as comorbidades psiquiátricas, ou seja, quando a pessoa desenvolve um quadro grave de psicose, ou de depressão, por exemplo, associado ao uso da droga.
ID 126 – Qual a importância da existência dos CAPS no tratamento de dependentes químicos?
T.M.A – O CAPS é um serviço muito importante porque é um dispositivo da rede básica, dentro da saúde mental, trabalhando em um determinado território. No [CAPS] Gregório de Matos, temos seis redutores de danos que atuam cotidianamente nas ruas, prestando apoio às pessoas que já foram atendidas por nós anteriormente para fazer um acompanhamento, mas também encontrando novas pessoas, falando do CAPS para elas e avaliando se elas precisam vir aqui ou não.
ID 126 – A rede CAPS de Salvador age de forma suficiente?
T.M.A – Além de dar assistência ao usuário, o CAPS também tem como função orientar outras instituições de saúde, fazer visitas domiciliares à pessoas que estão acamadas e não podem vir pra cá. No campo são atendidas tantas pessoas quanto na sede. Só que na cidade deveria haver um CAPS AD [Centro de Atenção Psicossocial para usuário de Álcool e Drogas] para cada 200 mil habitantes. Como Salvador tem cerca de 2 milhões de habitantes, nós deveríamos ter pelo menos 10 CAPS, e só temos três! E destes, dois funcionam mal porque estavam ligados a antiga gestão municipal.
ID 126 – A redução de danos facilita a reinserção do usuário na sociedade?
T.M.A – Com a redução de danos, os usuários vão diminuindo o consumo e podem até parar de usar. Mas o grande entrave é a falta de renda. As pessoas deixam as drogas mas não tem como se sustentar, e o Estado não tem estrutura para dar suporte a elas. Não existe uma politica para o usuário de droga, mas sim uma politica de estado dentro dessa ótica verticalizada do que é bom para as pessoas que vivem na rua. Então elas não têm para onde ir e voltam às origens, porque não existe uma perspectiva de futuro para elas garantida pelo Estado.
Soma-se a isso que o Estado se apodera do uso de drogas para explicar a violência, para explicar a incompetência do estado em proteger o cidadão. O uso de drogas cai como uma luva na miséria social, por isso o consumo é maior nas regiões periféricas. População jovem, sem qualificação para o trabalho, pobre e negra. A origem não é a droga, mas a pobreza, a desvalia social. O governo mascara isso quando ele coloca a droga como causa.
ID 126: – Qual a maior dificuldade enfrentada hoje pelas ações de redução de danos?
T.M.A – A redução de danos não pode estar apenas no registro da saúde pública, tem que influenciar em politicas públicas para o trabalho, para a cidadania e a segurança. Entretanto não existe uma politica do Estado nem do município para haja um cuidado com os usuários de drogas. Para isso acontecer, é preciso levar em consideração quem são essas pessoas e qual o tipo de vida que elas têm.
Outro problema é a descontinuidade administrativa. Em 2002, tínhamos 265 programas de redução de danos no país. Quando entrou o governo do PT, houve um desmonte nos programas. Pouco tempo depois nós tínhamos 40 programas funcionando, e hoje temos ainda menos. Fica difícil darmos uma continuidade às ações dessa forma.
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