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Bahia fica atrás de CE e SC em ranking de doações de órgãos
- 05/02/2014Texto: Ítalo Richard e Marília Cairo
Foto: Shirlene Andrade/ Labfoto
Embora seja o quarto estado mais populoso do país, a Bahia ocupa apenas a décima-terceira posição no ranking nacional de doadores de órgãos efetivos, com apenas 8,4 doações por milhão de habitantes – bem atrás de estados menores, como Ceará (21,1 doações por milhão) e Santa Catarina (24). Os dados são de um levantamento da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) feito no primeiro semestre de 2013.
O relatório aponta ainda que, no mesmo período, a Bahia obteve um dos piores índices do Brasil de negativa familiar (69,32%), o que, segundo a Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab), é o principal impedimento para que o estado possa atingir posição de destaque em número de transplantes. O mau resultado foi verificado mesmo após tentativas de sensibilização da população por meio de campanhas com o apelo “Doe órgãos, doe vida”, que está presente em diversas campanhas de conscientização nos meios de comunicação em todo o país.
Apesar das campanhas de conscientização que o estado afirma realizar, muitas informações relacionadas à doação de órgãos ainda não são de amplo conhecimento da população. A possibilidade de retirada da córnea num período de até seis horas após a parada do coração, por exemplo, é uma das informações, segundo a oftalmologista Milla Sampaio, desconhecidas pela maioria das pessoas, o que impacta no número de doações: “As pessoas não sabem que é possível fazer a doação de córnea com o coração parado. Após o óbito nós temos seis horas para fazer a retirada da córnea e ninguém sabe, então ninguém manifesta o desejo de doar, ao contrário de outros estados.”
Seguindo a legislação brasileira atual, basta que familiares, respeitando-se os graus de parentesco determinados em lei, assinem, com duas testemunhas, um termo de anuência após a comunicação da morte do paciente em acordo com critérios do Conselho Federal de Medicina, para que os órgãos de uma pessoa possam ser retirados.
A vontade da família do paciente prevalece sobre sua declaração em vida no que se refere a doação, conforme explica Milla, que é coordenadora do Banco de Olhos da Bahia, no Hospital Roberto Santos. “Hoje, carteira de identidade não tem essa coisa oficial. Se estiver escrito doador de órgãos, e se a família não autorizar, não é retirado, mesmo se você tiver se manifestado durante a vida. Quem vai autorizar é quem está vivo. Então por isso é que é importante que a pessoa, enquanto estiver viva, manifeste o seu desejo. Para que o familiar conheça o desejo da pessoa e decida.”
Razões da negativa – Ainda que venha tendo um desempenho aquém do ideal, a Bahia está aprimorando o seu programa de transplantes. Segundo América Carolina, enfermeira e coordenadora da Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDOS), o programa na rede de saúde ainda é jovem se comparado a outros. “O estado começou a se organizar de fato a partir do ano de 2006. Foi quando se implementou o programa de transplantes e começaram os investimentos. Nós temos grandes conquistas a partir dessa data.”
Apesar dos avanços, a enfermeira atribui ao reduzido número de doadores o entrave crucial para a ampliação da oferta de transplantes: “Em 2013, nós identificamos aproximadamente 450 potenciais doadores, que é um número ainda baixo para a quantidade de óbitos que o Estado registra. Destas notificações, nós só efetivamos 97 doadores. Grande parte desses potenciais doadores evoluíram para negativa familiar, o que ocasiona o baixo número de doações e consequentemente o baixo número de transplantes”, explica.
Em 2013 ,as equipes começaram a registrar as principais causas de negativa familiar. América revela que as justificativas são baseadas em alguns mitos. “As principais causas identificadas foram a não aceitação da morte. Existem ainda algumas lendas urbanas que se disser que é doador vão tirar os órgãos da pessoa ainda viva, que vai deixar morrer para tirar os órgãos. Isso não existe, o programa do transplante no Brasil inteiro é extremamente seguro. O diagnóstico de morte encefálica é feito com muita segurança”, diz.
Um dos motivos para a negativa estaria também ligado à ideia de mutilação. Para muitas pessoas, a retirada do globo ocular, por exemplo, traria prejuízos à estética do paciente falecido: “Às vezes a família questiona se vai ficar com um aspecto mutilado, por exemplo, se vai ficar alguma deformidade no rosto, e a equipe explica que não, por que quando tiramos o olho preenchemos a cavidade para que não fique fundo. Preenchemos e fazemos uma sutura na pálpebra, então dá a impressão de que o paciente está dormindo.”, explica a oftalmologista.
Filas de espera – Na Bahia, são realizados transplantes de fígado, rim, córnea, osso e medula. Existem atualmente no estado cerca de 2.140 pessoas na fila de espera por algum transplante. A maior fila é a de rim, com 1027 pessoas, cujo tempo médio de espera pode chegar a três anos e meio. Em seguida vem a de córnea, com quase 900 pacientes, terceira maior do país. A situação é diferente em estados vizinhos. Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Ceará já conseguiram zerar a fila de transplante para esse órgão. “Não é que não tenha ninguém listado, mas eles conseguem atender no mês aqueles pacientes que entram na lista”, diz América.
Milla aponta a falta de conhecimento da população como o motivo para que a Bahia não consiga obter fila zerada para transplante de córnea. Aliado a isto, outros fatores impactam na posição que o estado atualmente ocupa, tendo em vista que o Programa de Transplantes da Bahia ainda está em um estágio menos avançado de desenvolvimento se comparado à outros estados brasileiros. Transplantes de coração e pulmão, por exemplo, ainda não são realizados. O estado do Ceará, que já realiza transplantes de coração, tem investido em ações de conscientização. No ano passado, foi lançada, pelo próprio governo do estado do Ceará, na Semana Nacional de Doação de Órgãos, a Campanha “O verdadeiro poder está em você. Seja um doador de órgão. Salve vidas.” , que faz analogia a heróis dos quadrinhos. Na Bahia, as Campanhas de conscientização praticadas pelo estado tem sido somente as produzidas pelo governo federal para veiculação nacional.
Quanto ao número de postos de Procura de Órgãos, as OPOs, que reune profissionais treinados para abordagem de familiares de potenciais doadores em hospitais, ainda é muito reduzido, visto que a Bahia dispõe deste serviço em apenas sete unidades em toda a sua rede de atendimento. Ao todo, uma média de 70 profissionais atendem à esta demanda.
Saiba mais sobre o Programa de Transplantes
Doadores e Não Doadores – Apesar de a literatura médica apontar que a maioria das religiões não condenam a doação de órgãos, algumas justificativas de caráter religioso são usadas pelas famílias para não concretizar a doação. “Na Bahia a gente tem muito forte o sincretismo religioso e isso de alguma forma interfere. Os fiéis conhecem um pouco da filosofia das igrejas. Nós nos deparamos muito com ‘Não vou doar porque eu acredito no milagre, porque Deus vai operar o milagre’; esse também é um motivo colocado pelas famílias”, destaca a enfermeira.
Para o funcionário público Patrick Brasileiro, 34, que se declara não doador, a justificativa se baseia no destino de cada pessoa. “Eu já declarei à minha família que não sou doador. Acredito que cada pessoa que se encontra nessa situação está predestinada a passar por esse sofrimento”, diz. Não é o que pensa sua mãe, Romana Brasileiro, 63, que é doadora e já deixou claro para a família a sua escolha. “Acho que nós ainda podemos ajudar a quem precisa, mesmo depois da morte, aliviar o sofrimento das pessoas nessas condições. Eu fico imaginando uma família que possa estar passando por esse sofrimento, então ser doador é um gesto de generosidade com o próximo. Acho bonito você ter a oportunidade de salvar uma vida. Você morre, mas a outra pessoa nasce de novo.”