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Boaventura de Sousa Santos: uma análise sobre a atual democracia no Brasil e na América Latina
Cássia Carolina Macedo e Jorge Farias - 31/01/2018“Gloriosa e enganosa”. É assim que o professor e diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos, classifica a primeira década do milênio ao se referir ao crescimento dos movimentos sociais na última década. A análise foi feita sob a ótica de que não existiu uma equiparação de classes, mas sim, uma adequação do sistema para a distribuição de renda. Boaventura, que participará do Fórum Social Mundial que será realizado em março deste ano, na Universidade Federal da Bahia, concedeu uma entrevista exclusiva ao Impressão Digital 126, e, entre outros assuntos, analisou o modelo político e econômico dos governos brasileiros e o declínio dos governos de esquerda no Brasil e na America Latina, em contraponto com o modelo de esquerda Português que governa o país desde 1974.
Impressão Digital 126: Em recente artigo na Carta Capital, o senhor afirmou que o Fórum Social Mundial (FSM) precisava se reinventar ou correria o risco de desaparecer. De que forma a organização do FSM de Salvador e a nova Carta de Princípios podem ser novos caminhos para o fortalecimento de todo este movimento?
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: O artigo é um resumo da proposta que fiz ao Conselho Internacional no sentido de abrir uma discussão sobre a possibilidade de adaptar o FSM às novas condições do mundo contemporâneo que se caracterizam por uma crescente incompatibilidade entre capitalismo e democracia. O FSM só é possível em condições mínimas de regime democrático. Em tais condições, o FSM pode desaparecer. Assim sendo que devemos fazer para o defender? Transformá-lo num agente ativo de promoção da democracia. Fiz duas propostas: uma era propor na assembleia plenária a alteração da Carta de Princípios, no sentido de o FSM poder tomar decisões em defesa da democracia quando esta estiver em perigo, e a outra era alterar a composição do CI para o renovar e rejuvenescer. Neste momento, é dominado por gente que já ali está há muito tempo, que não tem nenhuma relação com os movimentos sociais de base, oriundo de organizações com dinheiro para pagar viagens. Quem mais precisava estar lá, não tem acesso. Não há um rosto jovem. O meu propósito era apenas abrir um debate, mas, a minha proposta foi considerada muito radical por aqueles que se julgam donos do FSM; pessoas de quem sou amigo e em cujas atividades tenho colaborado lealmente, e, em face disso, a minha proposta nem sequer será discutida. Em face disso, decidi nem sequer assistir à reunião do CI, que vai ter lugar em Salvador.
ID126: A nova Carta de Princípios já permite que o FSM tome decisões políticas concretas pela defesa da democracia como se não o fez no processo de impeachment de Dilma Rousseff?
BOAVENTURA: Essa era a minha ideia, mas para as pessoas influentes no CI, alterar a Carta é sacrilégio. Fui encarregado de redigir a proposta da decisão contra o impeachment, o que fiz com muito gosto, mas perante a resistência de Chico Whitaker e seus aliados com o argumento de que ia contra a Carta de Princípios, a decisão não pôde ser aprovada.
“A esquerda nunca pode governar como se tivesse poder econômico porque se assim fizer tem de governar com o apoio das forças de direita e esse apoio, que nunca é genuíno, mais tarde ou mais cedo vira-se contra a esquerda”
ID126: Você já chegou a dizer a esquerda teria o poder político, enquanto a direita, o econômico. Quais os impactos desta configuração para o cenário político atual no Brasil, por exemplo?
BOAVENTURA: Nas atuais condições, a esquerda quando está no poder só tem o poder de governo que é uma parte do poder político. Não tem o poder econômico que continua na mão da direita e das classes dominantes ou elites. Por isso, a esquerda nunca pode governar como se tivesse poder econômico, porque se assim fizer, tem de governar com o apoio das forças de direita e esse apoio, que nunca é genuíno, mais tarde ou mais cedo vira-se contra a esquerda. Foi o que aconteceu no Brasil. A esquerda tem de governar sempre em contra-corrente, com um pé no Estado e outro nos movimentos sociais
ID126: Em 2010, você declarou que achava que a primeira década do milênio havia sido gloriosa, com relação a um forte crescimento dos movimentos socialistas na América Latina. Como você vê isso hoje, oito anos depois?
BOAVENTURA: Foi gloriosa e enganosa. Ocorreu em condições que dificilmente se podem repetir, quando os preços das commodities eram altos e em que foi possível ao Estado ter recursos para distribuir a renda sem tirar aos ricos por via da tributação. Não havia conciliação de classes, havia apenas o uso instrumental de um governo de esquerda. Quando os preços baixaram, o Estado só podia continuar as suas políticas sociais e de distribuição de renda mediante reformas políticas e do sistema fiscal. Aí, tinha de chocar com as elites, e elas mostraram que tinham um enorme poder social e econômico, enquanto a esquerda só tinha o poder político de governar e este mostrou-se bem frágil.
ID126: O senhor defende que a fusão entre o mercado e a política tem sido prejudicial ao processo democrático. No Brasil, a corrupção intrínseca a vários âmbitos da sociedade, principalmente no setor político, é uma prova disto. Poderia pontuar uma experiência positiva em que mercado e política atuam separadamente e fortalecem a democracia?
BOAVENTURA: Durante muito tempo, alguns países europeus com um regime consolidado de social-democracia conseguiram isso com algum êxito. Hoje também esse regime está em crise.
ID126: Por que o exemplo de Portugal “da esquerda e que governa à esquerda” tem tido sucesso? O que esta experiência portuguesa tem a ensinar a sociedade brasileira e latino-americana?
BOAVENTURA: O governo em função em Portugal desde o final de 2015 é pioneiro em termos da articulação entre vários partidos de esquerda, um governo do Partido Socialista com apoio parlamentar dos dois partidos de esquerda, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português. É pouco conhecido internacionalmente, não só porque Portugal é um país pequeno, cujos processos políticos raramente fazem parte da atualidade política internacional, como e sobretudo por representar uma solução política que vai contra os interesses dos dois grandes inimigos globais da democracia que hoje dominam os media: o neoliberalismo e o capital financeiro global. Convém recapitular. Desde a Revolução de 25 de Abril de 1974, os portugueses votaram frequentemente na sua maioria em partidos de esquerda, mas foram governados por partidos de direita ou pelo Partido Socialista sozinho, ou coligado com partidos de direita. Os partidos de direita apresentavam-se a eleições sozinhos ou em coligação, enquanto os partidos de esquerda, na lógica de uma longa trajetória histórica, se apresentavam divididos por diferenças aparentemente inultrapassáveis. O mesmo aconteceu em outubro de 2015. Só que nessa ocasião, num gesto de inovação política que ficará nos anais da democracia europeia, os três partidos de esquerda (Partido Socialista, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português) resolveram entrar em negociações para buscarem uma articulação de incidência parlamentar que viabilizasse um governo de esquerda liderado por um desses partidos, o que teve mais votos, o Partido Socialista. Com negociações separadas entre este partido e os outros dois, tais as desconfianças recíprocas de partida, foi possível chegar a acordos que viabilizaram um governo de esquerda sem precedentes na Europa das últimas décadas.
A inovação destes acordos consistiu em várias premissas: primeiro, os acordos eram limitados e pragmáticos, estavam centrados em menores denominadores comuns com o objetivo de possibilitar um governo que travasse a continuação das políticas de empobrecimento dos portugueses, que os partidos de direita neoliberal tinham vindo a aplicar no país; segundo, os partidos mantinham a sua identidade programática, as suas bandeiras, e tornavam claro que os acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política não exigia que fossem consideradas, e muito menos abandonadas; terceiro, o governo deveria ter coerência e, para isso, deveria ser da responsabilidade de um só partido, e o apoio parlamentar garantiria a sua estabilidade; e por último, os acordos seriam celebrados de boa-fé e seriam acompanhados e verificados regularmente pelas partes. Os textos dos acordos constituem modelos de contenção política e detalham até ao pormenor os termos acordados. Basicamente, as medidas acordadas tinham dois grandes objetivos políticos: parar o empobrecimento dos portugueses, repondo rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas na base da escala de rendimentos, e travar as privatizações que, como todas as que ocorrem sobre a égide do neoliberalismo e do capital financeiro global, são atos de privataria.
“Quiseram governar como se tivessem tido acesso às elites e até fossem bem recebidos. A verdade é que foram tolerados enquanto eram úteis”
ID126: Atualmente, tem havido um crescimento do conservadorismo e da direita em decisões políticas, tanto no Brasil como em países como Chile e Argentina. O que acha que contribuiu para isso?
BOAVENTURA: Dois fatores principais: por um lado, os erros próprios dos governos anteriores alguns dos quais eram de esquerda. Quiseram governar como se tivessem tido acesso às elites e até fossem bem recebidos, mas a verdade é que foram tolerados enquanto eram úteis. Por outro lado, o imperialismo norte-americano está atuando muito fortemente em todo continente através de organizações libertárias e evangélicas, que dizem promover a democracia, mas o que querem é restituir o poder às elites e à direita, que sempre tem sido subserviente aos interesses econômicos e financeiros do império.
ID126: Acha que o impeachment da presidente Dilma Roussef, aqui no Brasil, foi uma conseqüência do enfraquecimento dos ideais da esquerda?
BOAVENTURA: Não, foi o resultado da intensa politização conservadora do Judiciário nos últimos vinte anos, para o pôr ao serviço dos interesses das classes dominantes e da defesa da propriedade privada. Essa politização foi feita em parte no país e em parte nos EUA, ou com o apoio efetivo do Departamento de Estado daquele país.
ID126: O recente fenômeno da pós-verdade e as conhecidas “fake news” tem tido forte impacto sobre as decisões políticas e a democracia. Quais as conseqüências disso?
BOAVENTURA: O fim da democracia.
ID126: Como você observa a relação entre o crescimento dos movimentos de direita e a repressão de alguns movimentos sociais de minorias?
BOAVENTURA: A direita que está no poder trata os movimentos de direita como seus e que, por isso, deve proteger, e trata os movimentos sociais populares como se fossem movimentos dos inimigos, e como tal devem ser tratados, ou seja devem ser reprimidos.
ID126: Houve um enfraquecimento da esquerda no Brasil, após a saída do PT do poder. Nesse processo, houve também uma divisão entre partidos do mesmo segmento. Qual você acredita que seja a melhor forma para reunificar essa esquerda e torná-la forte novamente país?
BOAVENTURA: Vai levar algum tempo, mas não estou pessimista. Há condições para renovar e rejuvenescer os partidos e para iniciar processos de articulação entre eles, sem nenhum perder a sua autonomia
ID126: Ainda sobre o Brasil, como observa o governo atual e as recentes reformas aprovadas?
BOAVENTURA: Um retrocesso social e político de décadas em apenas um ano. A contra-reforma mais violenta e mais rápida dos últimos cinquenta anos no mundo ocidental.
ID126: Qual o legado que este ciclo do FSM que passa por Salvador pode deixar para a reorganização dos movimentos sociais e recomposição da esquerda brasileira?
BOAVENTURA: Pode deixar um legado, se nele se puderem discutir os temas mais candentes e se nenhuma força política específica ou orientação ideológica o quiser controlar. Pode ser um grande encontro preparatório de uma articulação unitária das forças de esquerda e dos movimentos sociais, com vista a reorganizar a resistência social nas bases e discutir propostas para as próximas eleições.
ID126: Já conhece Salvador? Qual a expectativa para o FSM aqui na Bahia? O senhor estará aqui?
BOAVENTURA: Estarei sem dúvida e com todo o entusiasmo. Gosto muito da Bahia, e tenho relações muito fortes com a UFBA desde o tempo do Reitor Naomar Almeida Filho, hoje um grande amigo meu.