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Cena dramatúrgica: quando a voz da mulher é projetada pelo corpo masculino
Júnior Moreira e Thiago Conceição - 31/08/2017Discussões acerca da teatralidade de homens interpretarem papéis femininos
Júnior Moreira e Thiago Conceição
Na adolescência, em São Paulo, o jovem Herbert Silva Leão criou a Lility Buck, personagem que surgiu como forma de reconhecimento, ratificação e empoderamento de uma classe mais marginalizada, vista como minoria dentro da sociedade, a drag queen. Hoje, aos 29 anos, o ator e diretor teatral que migrou da capital paulista para Salvador, reverbera seu discurso em todos as produções que propõe na Bahia.
Assim como ele, na dramaturgia não é novidade ver homens interpretando papéis femininos. Enquanto uns reproduzem estereótipos, outros buscam entender a atmosfera. Na arte encontra-se de tudo. Seja como as próprias drags, travestis ou mulheres, volta e meia, eles aparecem e muitas vezes levantam debate. Paulo Gustavo virou Dona Hermínia em “Minha Mãe é uma Peça”, John Travolta encarnou a Edna Turnblad em “Hairspray”, Shawn Wayans e Marlons Wayans fizeram sucesso como “As Branquelas” em 2004 e até Kayky Brito, ainda adolescente, viveu a Bernadette, rapaz criado como menina por sua mãe em “Chocolate com Pimenta”.
Na Bahia, uma das grandes expoentes desse aspecto interpretativo é a Companhia Baiana de Patifaria que, como parte da comemoração pelos 30 anos, resolveu remontar pela terceira vez um dos seus maiores sucessos: “As Noviças Rebeldes”. Assim como das outras vezes (1995 e 2005), a Cia manteve a direção de Wolf Maia e o elenco formado apenas por homens para abordar a história de cinco freiras, que sobreviveram a sopa contaminada servida no convento da Irmandade Salue Marie, e agora precisam arrecadar dinheiro para o sepultamento de outras quatro irmãs da congregação que não foram enterradas, principalmente depois que a madre decidiu comprar um iPhone 7 Plus e acabou com as economias da ordem religiosa.
“Tem gerações que não viram Noviças em 95, mas agora podem olhar pela primeira vez. A melhor forma de voltar era resgatando as personagens, puxando do acervo. Existe uma faixa de público que pede muito por esse estilo de espetáculo”, explica Lelo Filho, criador da Companhia. Em seguida, ele pontua algumas das complexidades de trabalhos desse formato. “Nem todo ator consegue a transição entre o seu gênero e o oposto. Cada integrante começa a sentir as dificuldades de usar elemento, como um salto alto. Existe, no nosso caso, o objetivo de tornar a personagem mais orgânica”.
Além de Lelo, o elenco é formado por Mário Bezerra, Rodrigo Villa, Lázaro Reinaldo, escolhido através de audição, e Marcos Barretto, que está há dois anos na Companhia. “Quando recebi o convite de Lelo para fazer uma leitura e em seguida entrar no grupo, achei maravilhoso pois era a oportunidade de me aprofundar nessa comédia rasgada, né? De dar vida a tipos muito importantes na história do teatro brasileiro”, reitera. Para Marcos, não existe uma grande dificuldade para compor essas mulheres, é preciso respeitar os limites e características de cada uma, distanciando-se do que ele é. “O maior cuidado é de não cair na coisa caricata. É convencer mesmo diante de um texto. Construir uma mulher sem trejeitos masculinos, entende? Naturalizar esse ser”.
Lugar de fala
Em uma época que a busca pela representatividade é tão debatida, ter homens dando voz e contexto a falas que não são suas, levantando causas que, diante do atual discurso, não lhes cabem, devem trazer algumas retaliações. Quanto a isso, Lelo é direto. “Esse também é o trabalho do ator. Algumas mulheres criticam e acham os papéis escrachados, mas a maioria ama e cria laços com os intérpretes”, defende sendo completado por Marcos: “Fui construindo essa consciência de que o papel do artista é de dar voz a um personagem, seja ele feminino ou não. É como qualquer outro personagem”.
A jornalista Rubian Melo, que é feminista, militante e colaboradora do Blogueira Negras e da Revista Afirmativa discorda desse posicionamento. “Até pouco tempo, os homens eram maioria no teatro e por isso faziam papéis femininos. Isso era aceitável, pois compreendendo o contexto sociocultural em que havia poucas mulheres trabalhando fora do lar. Porém, hoje em dia, já existem muitas mulheres atuando e, por isso, não faz sentido ainda ver homens realizando tais papéis”, reclama e completando que o incômodo também é presente por se tratar de espetáculos de humor, o que pode induzir o público a pensar que apenas homens conseguem ser engraçados: “Estamos na era de piadas sem preconceito, estereótipos e bullying; piadas que não deteriore ou incomodem. Os humoristas precisam se reciclar e entender que as mulheres podem realizar seus próprios papéis seja no teatro ou em qualquer outra área”.
Cena LGBT
Apesar de depoimentos como o de Rubian, que representam a busca pelo seu lugar de fala e atuação, a arte também é espaço para libertação pessoal. Por esse motivo, a discussão sobre homens em papéis femininos migra para outro ponto. Herbet representa esse tipo. Como dito, sua Lility surgiu como protesto de um sistema vigente. “Quando a gente escolhe ser homem, socialmente no gênero masculino, existe uma melancolia pelo fato de perder o lado feminino. A questão de me montar como Lility traz esse resgate. Ela apresenta um pouco da minha cultura, da forma de entender o mundo como bissexual. Gosto de pessoas, não de vaginas ou pênis. Meu prazer é sentir os outros no seu jeito de ser, na sua essência”, destaca.
Com relação a discussão de gênero sobre a sua área de atuação profissional, ele enxerga como uma questão de afirmação social e acredita que muitos dos homens que fazem personagens oposto ao seu de forma espontânea não têm a ideia de defender uma luta que o não considera como algo negativo. “Porém, o meu objetivo com a Lility é passar a mensagem de afirmação para a sociedade. O gênero não é estático. É construção. Assim, tenho o foco em mostrar que existem outras possibilidades no mundo, lembranças feitas por meio da personagem”. Por fim, ainda destaca que cabe ao ator trazer esses posicionamentos para os trabalhos, pois, para ele, é uma questão de tomada de consciência.
Para atriz Mila Maria, pior do que um homem interpretar uma mulher é a interpretação em si. “Existe a tendência ao estereótipo e isso só reforça o pensamento machista e superficial que a sociedade tem sobre nós. A não ser que o estereótipo seja o fim, como nas comédias, mas, ainda assim, é preciso ter cuidado”, frisa. Em relação aos tipos da cena LGBT, como apresentado por Herbet, ela pondera: “As drags, antes de mais nada, são símbolos de luta. Foi a forma que essas pessoas encontraram de se enxergar, de se encontrar e de serem vistas, ou melhor, ouvidas. Mas também isso é apenas uma das milhares de interpretação, afinal, não me encontro no meu lugar de fala”, lembra.
Mainha fora da curva
Diante do cenário dos que são contra e daqueles a favor, às vezes, o personagem pode cair no gosto popular e essa discussão sobre um homem interpretar o personagem feminino acaba saindo de foco. Um bom exemplo contemporâneo é o que conseguiu fazer o ator Sulivã Bispo com sua Mainha, da página “Frases de Mainha”. Idealizado inicialmente pelos amigos Caio Cezar Oliveira e Erick Paz, o projeto de cards sobre dizeres maternais nordestinos ganhou forma, cor, tom e voz através dos atores Sulivã e Thiago Almasy (Júnior). De lá pra cá, a página saltou de 5 mil curtidas para quase 400 mil e muito se deve ao tipo criado para essa matriarca. Mainha é a representação da mulher negra, periférica e que faz o que pode para criar seu filho.
https://www.youtube.com/watch?v=mtoHjS_S7-Y
“Sempre quando as pessoas me perguntam em que me inspirei para fazer essa personagem, digo que veio do útero de minha mãe. Então, existe todo o respeito ao fazer um tipo feminino. Não é um menino tentando fazer uma mulher, é um menino mostrando como ele vê essas mulheres, essas matriarcas do nosso cotidiano”, constata e exemplifica ao dizer que o tipo é um dos seus primeiros personagens femininos. “Tive a preocupação da não hipersexualização do corpo negro. Um ator pode fazer uma mulher e não só de maneira estereotipada, mas trazendo a graça e beleza regional e popular”, assegura. Quanto às respostas positivas nas ruas, ele é sincero: “Fico muito surpreso e feliz. Se eu fizesse Mainha muito caricata, estaria falando mal de mim, minha mãe, minha avó e lá fora já fazem muito isso, né? Falam mal de gordo, viado, preto… Esse não é o meu lugar. Não posso falar mal de mim. Tento representar bem a nossa história”.
Virada de ângulo
Do outro lado da moeda, existem exemplos de mulheres que interpretaram personagens pensados inicialmente para serem ocupados por atores masculinos. Apesar de não se vestirem de homens, elas aceitaram fazer os papéis sem realizar alterações nos roteiros.
Entre saltos por cima de carros, socos e tiros, Angelina Jolie fez nas cenas do filme Salt (2010) todas as ações que seriam executadas por Tom Cruise, primeiro ator idealizado pelo diretor do longa. Para sair de Edwin Salt para Evelyn Salt, interpretada pela atriz, bastou apenas uma troca dos nomes.
No caso da personagem Kyle do filme Plano de Voo (2004), nem o nome precisou ser alterado. Após a entrada da atriz Jodie Foster no elenco, a narrativa que deveria ser de um pai que vai resgatar a sua filha, virou a de uma mãe que corre atrás do mesmo objetivo.
Voltando um pouco no tempo, em 1979, a Tenente Ripley de Alien, o Oitavo Passageiro era um segundo, de acordo com relatos do diretor Ridley Scott. No entanto, depois de pensar que o papel poderia ser feito por uma mulher, ele organizou testes e selecionou a atriz Sigourney Weaver, que se transformou protagonista e pediu que não fossem feitas mudanças no roteiro.
Perda ou não de representatividade, a verdade é que na maioria dos casos os atores vivem personagens que têm o objetivo de gerar de forma proposital debates sociais. Lugar de fala, características do feminino e do masculino, seja qual for o tema, o palco do teatro ou as telonas do cinema parecem ser ótimos lugares para as quebras de padrões.