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Cultura em crise: os reflexos econômicos da pandemia no setor de Cultura da Bahia
Filipe Seixas e Igor Cordeiro - 01/06/2021A pandemia de Covid-19, que há mais de um ano tem assolado o mundo, também provocou impactos severos no setor de cultura e entretenimento. Diversas atividades que normalmente movimentam grandes públicos e promovem alta concentração de pessoas tiveram seu funcionamento interrompido como medida de prevenção à grave crise sanitária que já matou mais de 460 mil pessoas, somente no Brasil. O setor que foi um dos primeiros a parar, provavelmente, será um dos últimos a retornar à normalidade.
Segundo dados do mais recente Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2007-2018, divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 5 milhões de pessoas tinham algum tipo de ocupação formal ou informal no setor cultural em 2018, o que representa 5,7% do total de ocupados no País.
Em 2017, 325,4 mil organizações atuavam em atividades consideradas como culturais, segundo o Cadastro Central de Empresas – CEMPRE do IBGE, que reúne dados de todas as empresas e organizações formalmente constituídas no País. Esse quantitativo corresponde a 6,5% do total que constituía o universo do CEMPRE naquele ano.
Já as pesquisas estruturais econômicas do IBGE, que têm um universo de abrangência menor que o do CEMPRE e contemplam empresas formalmente constituídas nos segmentos de Indústria de Transformação, Comércio e Serviços não Financeiros, estimaram que havia 223,4 mil empresas associadas ao setor cultural em 2017, as quais ocuparam 1,7 milhão de pessoas e geraram uma receita líquida de aproximadamente R$ 539 bilhões.
Esses indicadores demonstram a importância da cultura e da economia criativa como fonte de emprego e renda para milhões de pessoas no Brasil. Mas também revelam a urgência de o poder público agilizar e promover a ampliação do plano de imunização em todo o País para que, além de salvar vidas, as atividades do setor cultural possam ser retomadas o mais rápido possível. Enquanto isso, estados brasileiros reconhecidos pela vitalidade cultural de suas festividades, celebrações e outros tipos de eventos públicos vão deixando de gerar riquezas e oportunidades de trabalho para a população.
De acordo com o Boletim Economia Criativa na Bahia 2021, recentemente divulgado pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), a economia das atividades criativas e culturais gerou movimentação econômica de cerca de R$ 8 bilhões em 2018, seguindo uma tendência de alta que já vinha sendo registrada nos dois anos anteriores. Isso corresponde a 3,2% do valor agregado no produto interno bruto (PIB) de todo o estado baiano.
Valor Agregado (VA) da Economia Criativa no PIB (Bilhões de Reais) – Bahia – 2011-2018
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Fonte: IBGE, SEI
O estudo se baseou nos Códigos de Classificação de Atividades (CNAE), definidos pelo IBGE, e agrupou os segmentos econômicos em três domínios culturais principais: Um desses é o de Atividades Culturais, o qual abrange festas e celebrações, artesanato, música, equipamentos artísticos e culturais, produção artística, audiovisual e editorial. Já as Criações Funcionais – Serviços de Base Cultural se referem a serviços de arquitetura, publicidade e design. Por último, há as Atividades Relacionadas ao Segmento Criativo, que compreendem comércio, gastronomia, tecnologia da informação, atividades industriais, pesquisa e desenvolvimento.
Considerando a participação média dos domínios culturais no valor gerado pela economia criativa na Bahia, as Atividades Relacionadas ao Segmento Criativo são aquelas que mais se destacam, com participação de 66%, sendo seguidas pelas Atividades Culturais, que correspondem a 25%. No âmbito destas últimas, o segmento econômico de Festas e Celebrações foi o mais relevante, representando 45% do total produzido por este domínio cultural.
Participação média do Domínio Atividades Culturais, por segmento no Valor Agregado (VA) do PIB – Bahia – 2011-2018
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Fonte: IBGE, SEI
A economia da cultura e das atividades criativas também tem contribuição importante para o mercado de trabalho na Bahia. Em 2019, o setor era responsável por 4,8% dos empregados formais registrados no estado, o que corresponde a 108,174 empregos. Já em relação ao total de ocupados, em média, 1,7% trabalhava no conjunto dos segmentos econômicos criativos.
Mas agora o setor está enfrentando momentos de crise com o fechamento de equipamentos culturais, o cancelamento de espetáculos e a suspensão do calendário de festejos locais. Em razão disso, alguns artistas e outros trabalhadores da cultura têm recorrido a apresentações remotas em formato digital, as famosas lives, como alternativa à suspensão das festividades. Essa pode ser uma boa solução para as celebridades que têm milhares de seguidores nas redes sociais, mas não é viável aos trabalhadores autônomos, sobretudo, àqueles que lidam com as manifestações da cultura popular.
Sobre isso o professor, pesquisador e ex-secretário de Cultura, Antônio Albino Rubim avalia que “Lives de culturas populares, que são culturas muitas vezes umbilicalmente associadas a atividades presenciais e convivenciais ao vivo, são tão somente paliativos para manter alguma atividade, mas nunca podem ser pensadas como substitutas das atividades presenciais que estão no âmago de tais culturas”.
Festas e Celebrações têm sido um dos segmentos mais prejudicados pela crise provocada pela pandemia de Covid-19. Com uma ampla cadeia de atividades que envolve aluguel de equipamentos, organização de eventos, aluguel de palcos e coberturas e agenciamento de profissionais dos esportes, das artes e da cultura, o cancelamento de festejos e espetáculos atingiu em cheio o setor cultural e da economia criativa.
O ponto culminante dessa crise econômica do setor da cultura pôde ser observado com a suspensão dos festejos de verão e do Carnaval 2021, que é a maior festa do período conhecido como alta estação. Estima-se que ao menos 1,2 milhão de foliões estariam circulando pelas ruas de Salvador neste ano, se não fosse o cancelamento da festa provocado pela pandemia, é o que revela o estudo Efeitos do Des-Carnaval 2021 e das Festas de Verão para a Economia Soteropolitana.
Em relação à movimentação econômica, o estudo indica ainda que o cancelamento do Carnaval fez com que pelo menos de R$ 1,7 bilhão relativo ao gasto dos foliões durante os dias de festa deixassem de circular na economia soteropolitana. O mercado de trabalho também sofreu os impactos negativos, já que 101 mil trabalhadores ficaram sem alternativa de desempenhar suas atividades. Isso implicou a não geração de um montante de R$ 131 milhões de rendimentos com o trabalho. Esse cenário de crise explica a reivindicação de diversas categorias, sobretudo do segmento artístico, por políticas públicas de governo que ajudem o setor a atravessar esse extenso período de dificuldades econômicas.
Pequenos produtores e trabalhadores autônomos da cultura
Com a crise muitos profissionais do setor da cultura tiveram que buscar outros meios de garantir seu sustento. Naylson Carvalho, 38 anos, DJ e produtor de eventos na cidade de Salvador, conta que passou a focar em trabalhos que estavam em segundo plano no seu dia a dia normal: “Como sou formado em publicidade e propaganda e tenho pós-graduação em design estratégico, tive que voltar a fazer freelancer com indicação de alguns conhecidos para um serviço ou outro”. Naylson conta ainda que por causa de seu trabalho de designer, também passou a trabalhar com uma marca de roupas conhecida: “Como sou designer, eu faço as estampas para eles, eles me pagam por isso, e a cada camisa que eu divulgo na minha rede social e consigo vender, eles me pagam uma comissão também”.
Pai de uma filha de 7 anos, Naylson conta que chegou a trabalhar como DJ no último ano: “Quando teve o decreto que determinava que os eventos poderiam voltar com algumas restrições, algumas boates e barzinhos abriram, e aí eu acabei tocando, óbvio que com um cachê muito mais barato, até porque a capacidade dos locais era bem limitada”.
Também com formas alternativas de renda, Luisinho Garcia, 37 anos, cantor e dono da banda de pagode baiano ‘Entre no Clima’, conta que com a paralisação das atividades tem voltado seus esforços para vendas de uma marca de Whisky, da qual é representante comercial: “Hoje eu só estou sobrevivendo por eles, como representante, mais nada”.
Luisinho conta também sobre como ficou a situação dos músicos e equipe que o acompanhavam nos shows: “A maioria tem seus trabalhos fora da música, acho que dos meninos só Jeff (baterista) vivia apenas de música, e assim continua, começou a dar aula de bateria agora”.
Por normalmente ser um setor no qual os músicos são contratados como prestadores de serviço, e não com registro em carteira, ele conta que fica difícil fazer algum tipo de acordo com esses profissionais: “Não temos condição de manter um vínculo empregatício, infelizmente, então eles prestavam serviço, recebiam o cachê na hora e pronto, não tinha carteira assinada ou algo do tipo”.
Sobre auxílio e políticas públicas, ele conta que não conseguiu mais nada além do auxílio do governo federal: “Só consegui o auxílio emergencial, esse eu recebi. A verba que a prefeitura daqui destinaria para os músicos e profissionais da cultura, esse eu não fui contemplado não, tinham muitas burocracias, um monte de coisa, me inscrevi em bastante coisa e não recebi”.
Seguindo uma linha parecida, Angelo Aguiar, 38 anos, sendo 20 deles dedicados ao mundo da música, produtor cultural e de alguns artistas baianos como Vitinho Forró, e diretor da APE (Associação dos Profissionais de Evento), conta que tem se virado como pode para conseguir pagar suas contas também trabalhando como designer gráfico: “Não sou totalmente profissionalizado, mas tenho algum conhecimento das funções e já fiz isso antigamente, há um bom tempo atrás, e tenho alguns clientes que gostam do meu trabalho”. Ele complenta dizendo que, ainda assim, tem que exercer mais de uma atividade para conseguir se sustentar: “Não é uma atividade que me gera uma renda para pagar todos os meus custos, então, complemento rodando com a Uber, motorista particular”.
impressão digital 126 · Angelo Aguiar fala sobre a importância da APE e a possibilidade de retorno às atividades
O produtor foi o único dos entrevistados que conseguiu um auxílio além do emergencial oferecido pelo governo federal, o SOS Cultura, ofertado pela prefeitura de Salvador, que pagou uma parcela única de R$1.100 a cerca de 6 mil trabalhadores da cultura residentes na capital baiana.
Angelo ressalta também a importância da APE Brasil na representação da classe, desde roadies, carregadores, técnicos, iluminadores, músicos, produtores, até dançarinas e artistas: “A gente trabalha em prol dessa classe, a APE não é uma instituição social, mas ela é uma associação de profissionais na qual estamos em busca de qualificar esses profissionais para que tenhamos uma melhor entrega do serviço de eventos”.
Sobre uma possível volta do setor, Angelo se mostra descrente quanto ao retorno dos grandes eventos a curto prazo, mas acredita que é possível sim fazer eventos de menor porte de maneira segura: “Podemos fazer eventos sim, controlados, seguindo todas as indicações de segurança da OMS, do governo, e começar a ver uma luz no fim do túnel para o nosso setor com a liberação desses eventos pequenos, até chegar nos eventos grandes mais para frente”.
Sobre a retomada do setor, Albino Rubim aponta para a necessidade de políticas públicas efetivas para que haja uma real recuperação desse segmento, e que sejam capazes de ajudar os trabalhadores e pequenos produtores independentes a enfrentar a crise provocada pela pandemia com alguma dignidade.
“O setor da cultura necessita como toda a sociedade de políticas de emergência social e cultural efetivas e não miseráveis como as implementadas no Brasil por Messias Bolsonaro e Paulo Guedes. Sem tais políticas a vida brasileira iria ser atingida ainda com mais brutalidade que agora, com os quase 500 mil mortos”.
Rubim reafirma suas críticas às medidas atualmente adotadas pelo governo federal não só quanto ao setor cultural, mas também às ações de controle, ou à falta delas, na pandemia como um todo e às consequências disso para o futuro do País: “Difícil pensar o pós-pandemia no mundo e, em especial no Brasil, o pandemônio deliberado vigente no País com a gestão Messias Bolsonaro não só compromete o presente, mas dificulta muito imaginar futuros. A capacidade de imaginar futuros no Brasil está diretamente associada à capacidade de remover Messias Bolsonaro do poder”.