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Diversidade, moda agênero e ancestralidade
Heider Sacramento e Gustavo Silva - 06/07/2022Ascensão de marcas baianas no mercado nacional abre novo caminho para o fashionismo baiano
Ancestralidade, diversidade corporal e agênero: são esses os marcadores da moda feita na Bahia que agora ganham as passarelas nacionais. Mesmo localizados fora do eixo Sul e Sudeste, estilistas baianos traçam um caminho desbravando novos espaços. Marcas como Dendezeiro e Meninos Rei se destacaram na última São Paulo Fashion Week (SPFW), realizada em maio, abrindo uma discussão sobre a ascensão e reconhecimento do fashionismo baiano.
Renata Pitombo, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, especialista e pesquisadora no campo da moda, ressalta que as pautas de gênero, raça e diversidade foram rapidamente incorporadas ao mercado. “O mercado brasileiro é muito ágil, tem uma rítmica própria, mas sempre antenado com o que está em pauta na sociedade. As discussões sobre gênero, raça e diversidade foram rapidamente incorporadas pelo mercado, ele se reorientou para atender as diversidades”, afirma. Sobre a ascensão das marcas baianas no mercado nacional, Pitombo ressalta que há uma pulverização na produção e consequentemente estilistas e marcas de outras regiões – que não Sudeste e Sul, consideradas por muito tempo polo da moda, conseguem ascender. “Acredito que a produção e a criação de modo geral está mais pulverizada. Não temos mais tanta concentração nas regiões Sudeste e Sul. Muitas iniciativas e criações realizadas pelo Brasil cada vez mais têm visibilidade e ascendência”, explica a especialista.
Por outro lado, o estilista Deco Sodré, formado em moda em 2014 e que só conseguiu trabalhar como autônomo dois anos depois, conta que a maior dificuldade para ele foi a falta de oportunidade. “O mercado de moda da Bahia é muito rico, temos uma bagagem cultural enorme. Nos últimos anos, essa nossa identidade e cultura têm alcançado outros territórios e era isso que estava faltando, essa visibilidade. Hoje vemos grandes marcas baianas mostrando suas coleções nos principais eventos de moda do país como São Paulo Fashion Week (SPFW) e Casa de Criadores”. Além disso, Sodré aponta a falta de incentivo do governo neste campo para conseguir manter o processo criativo.
A Dendezeiro, da dupla de estilistas baianos Pedro Batalha e Hisan Silva, estreante na SPFW, usou a culinária afro-brasileira como inspiração para criar a coleção que foi apresentada por um ‘fashion film’ gravado em Salvador. Tabuleiro é uma homenagem aos quitutes: vatapá, caruru, acarajé e cocada.
A coleção exalta a importância e o simbolismo do tabuleiro para as baianas de acarajé e para o povo preto – uma característica forte da marca que cresceu e ganhou espaço há aproximadamente quatro anos. A preocupação da Dendezeiro em vestir todos os tipos de corpos também chama atenção, visto que a indústria da moda sempre foi criticada por sua falta de diversidade. Tentamos contato com a dupla de estilistas, porém, mesmo tendo respondido que nos dariam retorno, não nos enviaram as respostas às perguntas até o fechamento desta matéria.
Para o estilista Deco Sodré, é importante pensar em modelagens mais neutras e sem rótulos. “Uma moda agênero cria inúmeras possibilidades de estilo e acessos, cada um deve se sentir confortável para usar o que quer usar. O desafio é pensar uma roupa que seja “perfeita” para quem quiser usar, claro que ao seu modo. É necessário fazer um estudo de anatomia humana e pensar numa modelagem que seja completamente neutra – de forma que quem usar vai se sentir bem. Para o futuro e o agora, vai ser mais comum encontrarmos marcas e linhas de produtos pensando nesse público, que não se encaixa e não quer se encaixar em um padrão de gênero”, ressalta.
Outra dupla de estilistas que vem se destacando é a formada pelos irmãos Céu e Júnior Rocha, que estão há seis anos no mercado com a Meninos Rei. A marca soteropolitana surgiu com uma pequena produção a pedido de amigos. O desfile da marca teve momentos de bastante emoção, a exemplo da entrada da jornalista Maíra Azevedo, conhecida como ‘Tia Má’, e seu filho Aladê, além do protesto de um dos modelos que vestia uma ‘bag de entregador’ e em mãos um cartaz de protesto contra o presidente Jair Bolsonaro. O casting predominante de personalidades pretas, não necessariamente modelos profissionais, vestiu uma coleção vibrante e cheia de ancestralidade e representatividade, como é de costume para a marca. A coleção homenageia reis e rainhas do continente africano. Queridinhos dos famosos, a dupla já vestiu celebridades como Gaby Amarantos, Margareth Menezes, Emicida, dentre outres.
Vendas impulsionadas pelos canais digitais
A pulverização da produção de moda se deve em parte ao grande crescimento do e-commerce, modelo de negócio caracterizado pela compra e venda de produtos ou serviços por meios de canais digitais. De acordo com a Melhor Envio, plataforma agregadora de transportadoras de produtos, no período de janeiro a novembro de 2020, o setor de moda foi o maior em vendas, contabilizando um total de 1,8 milhão de produtos vendidos. As plataformas digitais de compra e venda e as redes sociais possibilitaram o surgimento para o cenário nacional de marcas e iniciativas que estão fora do eixo Sul-Sudeste.
Uma pesquisa feita pela Statista, empresa alemã especializada em dados de mercado e consumidores, posicionou o Brasil como nono maior mercado de moda do mundo, representando uma movimentação de R$250 bilhões. Entre 195 países, o mercado brasileiro é destaque entre os países emergentes. Segundo a pesquisa, o estado que mais consome moda é São Paulo, com 26% de consumidores, seguido de Minas Gerais e Rio de Janeiro com 10% e 7%, respectivamente. Nenhum estado do Nordeste figura entre os cinco maiores, pois todos estão localizados no Sudeste, a região mais rica e populosa do país que concentra também grande parte do mercado e da produção de moda.
A Dendezeiro, por exemplo, é uma marca com seu ateliê localizado na Cidade Baixa, em Salvador, e a venda das peças é feita de forma online através do site. Essa regionalização da moda brasileira resulta em bons frutos. “A globalização massificada nos trouxe um legado que é a focalização, o que deu lastro para as expressões das particularidades e diversidades regionais. Vislumbro de forma muito promissora essa nova fase com tanta miscigenação voltada com força para os valores afetivos e de raízes. O mercado de uma certa forma estava carente de novidades tangíveis com carga emocional alta e, neste momento que estamos, com grau de importância relevante para a sociedade”, celebra a especialista em moda e coordenadora do Curso de Moda da Universidade Salvador (Unifacs), Virginia Saback.
As redes sociais alçaram as marcas baianas ao mercado nacional. A vitrine digital leva através das telas toda a visualidade e discurso para além das passarelas. É a partir das redes que as marcas alcançam um público diverso do país e do mundo. Só no Instagram, a Meninos Rei tem mais de 68 mil seguidores. Segundo Gina Reis, mestra em Cultura e Sociedade pela UFBA, as redes sociais proporcionaram a democratização do mercado. “As redes sociais permitem uma democratização maior da moda, dentro de um mercado tão competitivo. É uma grande e importante ferramenta para romper barreiras geográficas”, afirma. “Meninos Rei e Dendezeiro são marcas que se destacaram nesse ambiente de rede social e acabaram ganhando destaque no eixo Sul-Sudeste”, ressalta a pesquisadora.
Para o futuro da moda, espera-se que a internet e as redes sociais possuam um papel cada vez mais importante nas novas tendências. No e-commerce, é possível observar a experimentação por parte das marcas com um recorte mais moderno, que trazem em seus marketplaces diferentes formatações de sites, propiciando uma experiência nova ao usuário e completamente além da divisão de abas feminina e masculina, acompanhando assim a fluidez que já é observável nas novas coleções. Hoje, as plataformas de redes sociais são imprescindíveis. Com os holofotes e vitrines virtuais, os estilistas podem ter um canal mais barato e direto com seu público, possibilitando o surgimento de produtos tão experimentais que trazem conceitos locais que podem ir além do gênero, tamanho e origem.
Maior marca preta do país
Há três anos a Dendezeiro chama atenção do mercado fashion brasileiro. A dupla Pedro Batalha e Hisan Silva faz uma moda agênero e adaptável a qualquer corporalidade. Jovens empreendedores pretos que furaram a bolha e levaram junto consigo toda uma cadeia de produção comprometida com as pautas defendidas pela marca. Da simplicidade do ateliê de costura de bairro à parceria com modelos negros baianos, a Dendezeiro foi a primeira marca brasileira a fazer uma ‘collab’ com o Instagram. A marca desenvolveu um mídia kit em comemoração ao reels – ferramenta de criação de vídeo da rede – destaque para um chapéu bucket com a logo da Dendezeiro e do Instagram. O kit foi enviado para mais de 200 influenciadores pelo país. Eleitos em 2019 pelo site Mundo Negro a maior marca preta do país, no último desfile a colaboração foi com a já consagrada Havaianas, que forneceu os calçados usados pelxs modeles. Todo esse reconhecimento só atesta que a dupla baiana veio para ficar, buscando mudar o status-quo.