É possível ser pirata em paz? Discutindo a pirataria no Brasil

Alan Barbosa, Bruno Santana e Ícaro Lima - 02/06/2021

Em 1975, Rita Lee disse que não, não era possível ser pirata em paz. Em 2021, a discussão segue por outros caminhos: a pirataria digital é um assunto que gera debates cada vez mais acalorados — e nem mesmo a lei brasileira sabe ao certo onde está no assunto.

Você não roubaria um carro. Você não roubaria uma mala. Você não roubaria uma televisão. Por que você roubaria um filme?

Qualquer pessoa que colocou um DVD para tocar no início dos anos 2000 certamente já teve contato com essa clássica campanha anti-pirataria. E até hoje, quase vinte anos depois, a pergunta ainda ecoa — agora referente não apenas a filmes, mas também a séries, programas de TV, músicas e basicamente qualquer tipo de conteúdo audiovisual.

A chegada da pandemia da COVID-19, que tem confinado boa parte dos brasileiros em casa por mais de um ano, apenas potencializou a atividade. Uma pesquisa da Muso, firma especializada em pirataria digital, registrou altas significativas da prática de pirataria em diversos países ao longo do último ano — o Brasil não entrou na medição, mas os saltos nos downloads ilegais ficaram entre 41% (Estados Unidos) e 66% (Itália), indicando uma tendência global de crescimento do consumo ilegal de conteúdo.

O fato é: a necessidade de buscar formas domésticas de lazer e entretenimento, junto com a crise econômica, o desemprego e a falta de dinheiro generalizada, tornaram o Brasil de 2021 um dos terrenos mais férteis de todo o mundo para a distribuição ainda maior de conteúdos de forma alternativa.

Os impactos econômicos da pirataria são inquestionáveis e preocupantes, especialmente em um país que oferece cada vez menos incentivos financeiros para que artistas (e artistas em potencial) produzam e distribuam suas criações. Por outro lado, um número crescente de pessoas — usuários, profissionais, pesquisadores — defende a distribuição livre de conteúdo audiovisual como uma ferramenta valiosa de acesso à cultura.

Quem está certo, afinal de contas?

A questão econômica

Primeiramente, é importante fazer uma distinção entre os termos “pirataria” e “download ilegal”. Tecnicamente falando, pirataria é o termo que se dá à venda de conteúdo audiovisual por pessoas ou grupos que não têm a propriedade sobre aquele conteúdo.  CDs e DVDs piratas, portanto, seriam um exemplo claro disso: uma “parte indevida” está se apropriando e lucrando com a produção de outrem.

Em tempos de inclusão digital e total desuso da mídia física, entretanto, a ideia de pirataria torna-se mais nebulosa. A figura do indivíduo ou grupo que baixa álbuns, filmes e/ou séries e os revende para lucro próprio torna-se cada vez mais rara, uma vez que qualquer usuário com um mínimo de experiência online pode fazê-lo por conta própria. A prática que ocorre hoje com mais frequência, portanto, não poderia ser tecnicamente classificada como pirataria — mas nem por isso ela deixa de ser danosa para artistas, empresas ou mesmo para o Estado.

De acordo com uma pesquisa recente da Mobile Time/Opinion Box, encomendada pela Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), o impacto financeiro da pirataria e do download ilegal de conteúdo no Brasil gira em torno de R$15,5 bilhões ao ano no orçamento do Estado. Destes, cerca de R$2 bilhões representam impostos que os governos (federal, estaduais e municipais) deixam de arrecadar.

A mesma pesquisa, realizada em março último, constatou que 33 milhões de brasileiros — ou 27,2% dos usuários de internet do país com mais de 16 anos — consomem conteúdo pirateado por um ou mais meios. Vale notar que os dados referem-se apenas à TV por assinatura: levando em conta todos os filmes, séries, músicas, livros, podcasts e outros conteúdos baixados ou transmitidos ilegalmente, os números são muito maiores.

Devido ao caráter descentralizado e relativamente anônimo do download ilegal de conteúdo, é difícil dimensionar com precisão a quantidade de filmes e séries baixados no país. Chama atenção, entretanto, um dado que pode estar ligado ao consumo irregular de conteúdo digital: o número de assinantes de internet banda larga, que dobrou de 2019 para 2020. Segundo a ABTA, em 2019 o Brasil tinha 13,7 milhões de assinaturas do tipo; no ano passado, esse número saltou para mais de 30 milhões de assinantes.

Analisando a questão numa perspectiva global, o Brasil rapidamente se destaca: uma pesquisa da Nagra/Kudelski Group, realizada em dezembro último, constatou que somos o país que mais consome pirataria online no mundo, com números que superam continentes inteiros.

A pesquisa se concentrou em usuários de serviços ilegais de TV por assinatura e constatou que, dos mais de 4 milhões de usuários de um determinado servidor pirata espalhados pelo mundo, cerca de 648 mil  estavam no Brasil — ou 16% do total. No ranking geral, o país supera regiões inteiras:

  1. Brasil
  2. Norte da África (Argélia, Marrocos, Egito e Tunísia)
  3. Oriente Médio (Irã e Arábia Saudita)
  4. Europa (França, Alemanha e Itália)

Campanhas não faltam para alertar os brasileiros sobre os perigos e o caráter ilegal da pirataria, desde a clássica propaganda citada no início desta reportagem até ações recentes. Neste sentido, a ABTA lançou na última semana, em parceria com o Grupo Globo mais uma ação de marketing anti-pirataria. Nela, crianças alertam comportamentos supostamente contraditórios dos pais, que as educariam para seguir as regras sociais e os bons costumes — mas, por outro lado, estariam desrespeitando as leis ao baixar e consumir conteúdo ilegal.

Falando em leis…

A questão jurídica

Não é novidade que o Brasil ainda engatinha na construção de leis e penas referentes a crimes e irregularidades no espaço digital: por aqui, apenas recentemente alguns usuários de torrents (uma das formas mais comuns de baixar filmes e séries online) começaram a receber notificações por conta do uso da ferramenta. Para efeito de comparação, a Espanha recentemente condenou uma usuária a seis meses de prisão por piratear cópias do sistema operacional Windows e da suíte de produtividade Office, ambos da Microsoft.

O fato é que, no Brasil de 2021, advogados, juristas e especialistas na área ainda divergem sobre o que dizem a Constituição Federal e o Código Penal em relação aos usuários que baixam conteúdo ilegalmente na internet.

A Lei de Direitos Autorais Lei nº 9.610/98 deixa evidente que o direito de uso de uma determinada obra pertence apenas ao seu autor. Já a parte inicial do Art. 184 do Código Penal diz o seguinte (destaque nosso):

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

§ 1 o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

Isto é: numa interpretação mais rígida das legislações, qualquer tipo de download ilegal de conteúdo na internet seria crime e estaria passível às penas supracitadas, de multa ou mesmo detenção. Na prática, entretanto, profissionais da área têm interpretações diferentes sobre a questão.

Em outras palavras, ainda não há uma definição específica sobre as consequências jurídicas para usuários que baixam conteúdo ilegalmente na internet — contanto que esse conteúdo seja baixado exclusivamente para consumo próprio.

Como a lei ainda é nebulosa, o combate ao download ilegal no Brasil tem sido feito de forma basicamente extrajudicial. Ao longo dos últimos meses, internautas que baixaram algumas produções — títulos como “Hellboy”, “Rambo: Até o Fim” e “After: Depois da Verdade”, todos lançados entre 2019 e 2020 — começaram a receber notificações e multas, variando entre R$500 e R$2 mil, das suas operadoras de internet.

A solicitação dessas notificações e multas parte das próprias donas dos direitos autorais dos filmes, como os estúdios e produtoras, como uma forma de coibir a prática do download ilegal no país. Refletindo a discussão dos parágrafos acima, ainda não há um consenso sobre as consequências legais caso os usuários se recusem a pagar as multas aplicadas: alguns advogados e juristas afirmam que os internautas podem ser enquadrados no Art. 184 do Código Penal, enquanto defensores do download livre apontam as medidas como ações de copyright trolls, pensadas apenas para assustar os usuários e sem efeito jurídico prático.

Por outro lado, se ainda há controvérsias em relação à ilegalidade do download livre para uso pessoal, o mesmo não pode ser dito caso o intuito da pessoa envolva algum tipo de lucro com esse conteúdo (como revendê-lo por meio de CDs ou DVDs piratas, por exemplo). Neste caso, não há dúvidas: o Art. 184 vale sem restrições e o indivíduo estará sujeito a multa e prisão.

A questão social

Para todas as questões econômicas e jurídicas pairando em torno do assunto, o download ilegal de conteúdo ainda suscita uma discussão mais profunda: a do acesso à arte e dos impactos sociais da distribuição livre de conteúdo audiovisual.

Rafael Bürger, 24, é apaixonado pela sétima arte e está concluindo o Mestrado em Cinema, Comunicação e Indústria Audiovisual pela Universidade de Valladolid, na Espanha. Ele credita os sites e fóruns de compartilhamento de filmes como alguns dos principais fatores para o desenvolvimento do seu interesse pela área — nesses espaços virtuais, Bürger teve acesso a produções inacessíveis nos meios oficiais e se envolveu em discussões que possibilitaram ampliar seus horizontes no universo cinematográfico.

Bürger notou, entretanto, que seu consumo de filmes e séries distribuídos ilegalmente diminuiu muito ao longo dos últimos anos: ele citou o surgimento de plataformas de streaming focadas numa curadoria mais cuidadosa do conteúdo, como o Mubi, e na realização — especialmente no contexto pandêmico — de festivais de cinema realizados de forma remota, pela internet, nos quais é possível assistir a produções inéditas e de pouco apelo comercial.

Questionado se a pirataria e a distribuição ilegal de conteúdo audiovisual representariam um perigo para a produção artística, especialmente no Brasil, Bürger discordou parcialmente:

São duas linhas distintas. Se você pensa no cinema de blockbuster, americano ou mesmo brasileiro, isso [distribuir de forma gratuita] realmente é danoso para o lucro. Mas há casos em que isso é desejável: veja o caso de Game of Thrones, por exemplo, que ganhou audiência e reconhecimento por causa da pirataria.

Por outro lado, se você fala do cinema do Brasil, que é quase inteiramente financiado antes da produção, o retorno financeiro de uma bilheteria não vai implicar necessariamente no sucesso ou fracasso do filme — afinal, o que vale para a distribuidora é que o seu filme ou a sua série cheguem ao máximo de pessoas possível, e a partir disso você consegue ganhar dinheiro não só com os direitos de exibição, mas também com outras fontes de renda. Aí já entramos na cultura dos fãs, da transmidialidade. Então eu vejo que há um grande caminho aí no qual, no fim das contas, eu creio que essa “perda” de lucro pode ser revertida.

Do outro lado da discussão, muitos usuários preferem seguir um caminho mais, digamos, legalizado no seu consumo de produtos audiovisuais. Rafael Fischmann, 35, é fundador/editor-chefe do site MacMagazine e mantém um canal no YouTube com cerca de 100 mil inscritos. Fischmann, um “internauta avançado” de longa data, viveu toda a era dos sites e softwares para baixar filmes, séries e músicas, como o eMule, o LimeWire e o 4Shared, mas nunca chegou a ser usuário contumaz de nenhum deles por preferir soluções mais fáceis — e legalizadas:

Eu seria hipócrita de falar que nunca pirateei nada — especialmente na minha adolescência, era a única forma que a gente tinha de obter música, tirando a compra de CDs. No início dos anos 2000, eu tinha muitos discos ripados no computador e ainda assim pirateava algumas coisas. Isso mudou bastante quando a Apple lançou a iTunes Store em 2003: eu gastava muito dinheiro — até 50, 100 dólares por mês — comprando música por lá e boa parte da minha biblioteca passou a ser legalizada. Me fazia muito bem consumir esse conteúdo de forma legalizada, e não só isso, porque a Apple facilitou o consumo desses conteúdos: em dois cliques você confirmava a compra e o álbum já vinha todo bonitinho com as informações certas. Hoje em dia, eu não compro mais músicas: sou assinante do Apple Music desde o seu lançamento e acredito que essa tenha sido a solução para a pirataria de música. Creio que a mensalidade que se paga para um Apple Music ou Spotify não justifica ninguém piratear nada.

Em termos de filmes, baixá-los era mais raro, até porque naquela época as conexões não eram muito boas e demorava bastante. Hoje, eu assino Netflix, Disney+, Apple TV+, e antes disso alugava muitos filmes na iTunes Store. Então em termos de filmes e séries, já tem mais tempo que eu tô “legalizado”.

Considerando a diferença nas abordagens e nas vivências, esta reportagem fez uma pergunta especial a cada um dos entrevistados. Confira abaixo:

Para Rafael Bürger: considere um cenário no qual você é um cineasta consolidado. Você recomendaria que potenciais espectadores dos seus filmes buscassem meios alternativos ou ilegais para baixá-los ou assisti-los online?

Para Rafael Fischmann: você vê algum cenário — indisponibilidade do conteúdo no país, falta de condições econômicas da pessoa ou outro — no qual seria justificável hoje baixar, assistir ou escutar um conteúdo ilegalmente?

As opiniões divergentes encontram também um caminho nas redes sociais. Não é raro encontrar memes, comentários e embates, muitas vezes calorosos, sobre as questões éticas e morais da pirataria nas redes sociais, como é possível ver em alguns tweets abaixo dispostos:

https://twitter.com/histerinha/status/1398626718500413451?s=20
https://twitter.com/arthurdefraga/status/1399153055141072897

O fato é que, como bem disse Rita Lee na canção que dá o título a esta reportagem, não é possível ser pirata em paz. OK, talvez seja, dependendo do seu alinhamento ético com a coisa e das técnicas que você usa, mas é inegável que o Brasil está começando a combater a prática com mais força — os dias de download e streaming livres, não vigiados, estão terminando.

Por fim, se você chegou aqui procurando pela música da rainha do rock, aí está ela — de forma legalizada:

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