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Hospital de Bonecas: Restaurando afetos
Lily Menezes - 23/12/2017Mais do que apenas consertar bonecas e bonecos, os restauradores reavivam lembranças e realizam sonhos de crianças de todas as idades
Entre roupas que já não servem mais e livros que foram comprados e sequer foram abertos por falta de tempo, aparece “aquela” caixa, esquecida no fundo do armário do quarto ou daquele cômodo da casa onde ficam todas as coisas que deixamos para trás. Ao abrir a caixa, lá está aquela boneca com o rosto já um pouco empoeirado, os cabelos loiros quase cinzentos e despenteados, o vestido de mangas bufantes já um tanto amarelado pelo tempo. Ou aquele urso de pelúcia, muito felpudo, com botão no meio, que ao ser apertado diz “Eu te amo”, e era companheiro inseparável na hora de dormir. Não importa qual brinquedo de infância era o favorito: quando um adulto o vê em sua frente novamente, sua mente viaja, flutuando num doce retorno à infância, quando brincar era a única preocupação, evocando memórias de um tempo feliz.
São os sentimentos de conforto e nostalgia que motivam os “médicos de brinquedos”. Para eles, o trabalho de restauração vai além de recolocar um braço quebrado de volta ao corpo de uma boneca ou refazer a costura de um urso de pelúcia. Restaurar brinquedos é trazer de volta sonhos de infância, dar vida nova aos símbolos de uma fase importante da trajetória do seu dono.
A ideia dos “hospitais de brinquedos” é semelhante aos hospitais de verdade, onde os donos dos brinquedos levam seus “pacientes” para que os médicos avaliem o estado e ofereçam os reparos necessários para deixá-los novos. Em um país onde mais de mil novos brinquedos foram lançados no ano passado, segundo relatório feito pela Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ), a restauração de brinquedos acaba se tornando um alento, resgatando histórias familiares e se tornando uma alternativa em tempos de consumo exagerado, trazendo os brinquedos de volta aos dias de glória.
Hospitais e médicos
No Brasil, um dos pioneiros é o Hospital das Bonecas, considerado a maior empresa de conserto de brinquedos do país, com oito décadas de funcionamento. Sua estrutura é semelhante a de um hospital de verdade, com centro cirúrgico, médicos e enfermeiras, berçário e até mesmo uma ambulância para levar e trazer os brinquedos. A equipe é composta por quarenta funcionários, que está sempre a postos para as emergências.
Em Salvador, o mais conhecido e até então único em funcionamento é o Hospital de Bonecas, que funciona há pouco mais de quarenta anos numa casa simples, situada ao pé de uma ladeira íngreme nos Barris, bem próximo à Biblioteca Central. A placa é muito antiga, e é preciso um pouco de paciência para encontrar o hospital aberto – uma queixa frequente entre os donos de brinquedos que precisam de socorro, que não conseguem entrar em contato com o telefone especificado na entrada ou dão de cara com as portas fechadas.
Apesar de não contar com a mesma infraestrutura dos seus semelhantes no Sul e Sudeste, tendo apenas duas mesas e algumas prateleiras para acomodar os pacientes e os “medicamentos” que serão usados durante o tratamento, ainda assim é a primeira opção lembrada quando o assunto é conserto de brinquedos. O hospital ganhou o mundo, sendo mencionado na reportagem de um jornal dos Estados Unidos.
O Hospital de Bonecas tem um único médico, Rosalvo Bonfim, 62, que foi iniciado nas artes da restauração de brinquedos com o pai, que perdeu quando adolescente. Ele relata que ao consertar brinquedos, é como se fizesse um retorno à infância. “Além da necessidade, tem os brinquedos que eu nunca tive e aí fui criando um amor pela profissão”, conta.
Os que não conseguem entrar em contato com o Hospital acabam procurando pelos serviços dos médicos de brinquedos em outros estados, que atendem demandas por todo o Brasil, da seguinte forma: o dono do brinquedo paga a “passagem” do paciente, isto é, paga o frete via Correios até o médico, que o examina e dá um orçamento com o valor aproximado de acordo com a necessidade de reparos. Quando o dono autoriza os “procedimentos” e faz o pagamento do tratamento pelo qual o brinquedo passará, o médico executa o conserto e manda o paciente de volta para o seu dono, mediante novo pagamento do frete. Dependendo do estado onde o hospital se situe, os valores de deslocamento do paciente variam entre R$ 40 e R$ 80, sendo o tamanho e o peso outros fatores determinantes para o preço final.
Cuidados sem fronteiras
Um dos hospitais de bonecas mais queridos pelo Brasil é o Doll Hospital Project, que atende pacientes por todo o território nacional. Nele, a enfermeira é Heidi Michel, uma designer de 23 anos, que trabalha com as meninas de plástico desde 2013. Na velha garagem da casa de sua avó, que tem muitos amigos com filhos, sobrinhos ou netos pequenos, os brinquedos delas, vindos de várias épocas, foram se acumulando e nunca foram jogados fora até então. “Sempre aparecia uma criança que, entediada com a conversa dos adultos, descobria que havia bonecas, carrinhos e blocos de montar escondidos num canto da casa”, conta. Uma boneca, maior e mais velha, se destacava das outras, sentada na cama de um quarto de hóspedes. Estava empoeirada, com os cabelos desgrenhados, suja e com marcas de caneta. Foi sugerido a Heidi que jogasse a boneca fora. Olhando para o estado dela, se recusou. Foi então que o desejo de trazer os brinquedos de volta aos melhores dias surgiu.
O gosto de Heidi pelo restauro, porém, veio muito antes da ideia do Doll Hospital Project. “Eu já gostava de cuidar das bonecas das amigas desde novinha, mas era uma coisa bem perdida. Em 2013, eu decidi abrir um hospitalzinho, para arrumar todas as bonecas que eu pudesse e não deixar nenhuma ser jogada fora”, conta.
As bonecas Barbie, criadas por Ruth Handler em 1959, lideram os pedidos de restauração. Entre os muitos trabalhos de “salvamento de brinquedos”, como a enfermeira gosta de dizer, aparecem os bonecos My Little Pony, da Hasbro, bonecas ícones da Estrela, como a Meu Amor, e algumas pullips, que são tratadas como filhas pelos donos. As pullips são bonecas articuladas criadas em 2003, na Coreia do Sul, com lançamentos mensais e mais de 200 modelos disponíveis. Elas medem 30 cm de altura e tem como característica mais marcante a “desproporção” entre o restante do corpo e a cabeça; enquanto o primeiro mede 23 cm e é produzido em escala 1:6, a cabeça tem apenas 7 cm de altura e é moldada na escala 1:3. Além das meninas de plástico, Heidi também salva eletrodomésticos de brinquedo.
Poucos são os casos não atendidos pelo Doll Hospital Project. Um deles é o reroot, procedimento que consiste em implantar cabelos novos na boneca ou boneco. Ele é recomendado para os donos que cortaram demais o cabelo das suas bonecas na hora de brincar e querem deixá-los como antes, ou simplesmente não estão satisfeitos com a cor de fábrica dos cabelos e desejam mudá-la. Também é indicada para dar nova vida a bonecos naturalmente carecas ou com poucos fios de cabelo.
“Fazer reroot é muito trabalhoso”, afirma Heidi. “Eu não tenho uma ferramenta apropriada para isso, aí acaba sendo mais lento ainda”, conta. Há diversas técnicas para executar o reroot, mas a mais artesanal e frequentemente praticada usa agulhas de crochê para implantar o cabelo escolhido pelo cliente fio a fio na cabeça da boneca. Nas bonecas maiores, o tratamento pode durar horas. A enfermeira avisa que o hospital não aceita “pacientes” movidos à fricção ou corda, nem eletrônicos.
Em São Paulo, a paixão pela restauração de brinquedos também contagiou Regiane Fernandes, a Gigi, que mantém um ateliê especializado no salvamento de bonecos. Assim como Heidi, Regiane começou seus primeiros trabalhos em 2013, de forma independente. “Eu sou colecionadora e comecei a restaurar as minhas bonecas antigas. Então, comecei a conhecer pessoas que também gostavam dessas bonecas, e quando vi estava restaurando para outros colecionadores”, comenta. A paixão pelas meninas de plástico das antigas é tão grande, que ela mantém um acervo pessoal com dezenas de bonecas datadas das décadas de 70 e 80, suas prediletas, por terem feito parte de sua infância. “Colecionar bonecas, para mim, é mais do que um hobby, uma arte, uma paixão, um sonho”, afirma Regiane. Ela mantém um blog para exibir sua coleção, catálogos antigos de bonecas e apresentar curiosidades sobre o universo “bonequeiro”, apelido dado aos colecionadores de bonecas.
Eternizando memórias
Ainda que as crianças peçam aos pais para que levem seus brinquedos ao conserto, o público que corre para as “emergências” é majoritariamente adulto. No Hospital de Bonecas, Rosalvo afirma que quem mais procura seus serviços são as pessoas na faixa dos 60 anos.
Essa realidade também é confirmada por Regiane, que coloca o valor sentimental dos brinquedos como um dos maiores motivadores da busca pela restauração. “Na maioria das vezes são pessoas que possuem algum brinquedo antigo de valor sentimental e o querem inteiro novamente. Outras vezes são colecionadores, e outras pessoas que realizaram o sonho de conseguir um brinquedo que não puderam ter na infância e agora o querem perfeito”, afirma. No Doll Hospital Project, a clientela de Heidi está na faixa dos 40 anos de idade. O saudosismo e a vontade de eternizar o brinquedo, porém, são iguais. “A maior parte dos brinquedos que eu recebo vem de adultos querendo recuperar toys de infância”, conta.
Além da nostalgia, a restauração de brinquedos também é solicitada como presente de um familiar para outro, o que acaba fortalecendo os laços entre “presenteador” e presenteado. “São os pedidos mais comuns”, afirma Heidi. Não faltam histórias engraçadas envolvendo o tratamento dos pacientes e seus familiares. Uma delas teve como protagonistas duas irmãs e a boneca “Meu Bebê”, da Estrela. “A irmã, uma senhora de uns 40, 50 anos, pediu pra restaurar a boneca da outra como presente, de surpresa. Recebi muitos prints engraçados da irmã escondendo a surpresa e depois dizendo pra dona da boneca não colocá-la na máquina de lavar”, lembra aos risos.
Brinquedos além do tempo
Entre os muitos casos acolhidos pelas médicas de brinquedos, alguns se destacam pela origem e nascimento dos pacientes. Atualmente, o projeto mais delicado de Heidi é uma boneca alemã com mais de 100 anos de idade. A dona da boneca é Annah Hel, uma costureira de São Paulo, que lhe confiou a restauração por ver as avaliações positivas de outras amigas que haviam feito serviços com a gaúcha. A boneca, feita em porcelana e madeira, pertencia à avó de Annah e será entregue para a mãe. “Cuidar de relíquias de família assim é um trabalho muito gratificante”, comenta. Heidi ficou um pouco insegura ao pegar a ordem, por conta da complexidade. “Além de restaurar partes de vários materiais, ela tem elásticos por dentro, precisa refazer a parte interna da cabeça, uma peruca, prender tudo, terminar de costurar um vestido e incorporar um bordado antigo como parte da roupa. Essa boneca é o meu maior desafio, sem dúvidas”, admite. “Fiquei muito feliz por Annah ter me confiado a boneca”.
“Não dá pra deixar de sorrir depois de ver a alegria da pessoa com o brinquedo restaurado”, afirma a restauradora de bonecas Heidi Michel
Regiane também passou por apertos com alguns casos que pegou, a exemplo de um urso dos anos 70, com braços e pernas articuladas, que chegou muito destruído ao ateliê. “Ele era muito antigo, tinha recheio de palha, com esqueleto de metal. Foi uma restauração muito trabalhosa”, conta. Felizmente, o urso deixou a “sala de cirurgia” em perfeitas condições, para a alegria do dono. Outro desafio enfrentado por Gigi foi a restauração de uma ovelha de pelúcia com vinte e quatro anos de idade, que havia sido passado de avô para neto. O desejo do rapaz era de que todas as partes originais fossem mantidas, mas o material já estava danificado demais. Mesmo assim, Regiane aceitou o caso, o tratamento foi um sucesso, e a ovelhinha recebeu alta.
Afeição sem idade
Para os “médicos de brinquedos”, o trabalho com a restauração mistura bem o dever de não deixar nenhum paciente terminar no lixo, com o prazer de retornar à infância e a oportunidade de mexer com brinquedos que eles eventualmente não tiveram contato quando foram crianças. Também é o momento perfeito para conhecer brinquedos que não foram de sua época, e aprender com os seus donos. Foi o caso de Heidi, que recebeu uma boneca articulada de 50 anos com pés quebrados, rosto desgastado e cabelos faltando. “Eu não conhecia nada sobre ela e era uma raridade dos anos 60. Ela ficou toda bonita depois de arrumada e me mandaram vídeos a respeito dela”, conta sobre a paciente.
Todos concordam num ponto: a melhor parte da vida de resgatar e salvar brinquedos é a gratidão no olhar e no sorriso de quem recebe o brinquedo como era antes. Em algumas ocasiões, o choro aparece como uma reação quando o paciente tem alta. “Uma mulher do subúrbio chegou aqui com dois bonecos quebrados, desesperada. Chorava como uma criança”, relembra Rosalvo. Ele teve dificuldades para fazer o restauro, mas o tratamento foi bem-sucedido e a mulher se desfez em lágrimas ao buscar os bonecos já consertados. “Não dá pra deixar de sorrir depois de ver a alegria da pessoa com o brinquedo restaurado”, afirma Heidi, que ainda ama brinquedos e bonecas e acredita que a idade é um conceito relativo. Regiane define em poucas palavras o que aprendeu com a profissão: “A restauração é uma arte, uma alquimia que necessita de paciência e dedicação, mas em compensação, nos devolve a beleza e a alegria”.