Mães criticam ação para crianças autistas no Salvador Shopping: ‘Horário não combina’
Maria Raquel Brito, Samantha Freire - 04/10/2023Voltada para crianças autistas, edição mais recente da Hora Silenciosa aconteceu no último sábado de setembro, das 9h às 10h; familiares demandam medidas permanentes na cidade
Desde abril deste ano, o Salvador Shopping promove, no último sábado de cada mês, a Hora Silenciosa, conjunto de ações que tem o objetivo de criar condições mais acolhedoras para pessoas autistas. No entanto, a última edição da iniciativa foi recebida com críticas nas redes sociais: em uma publicação feita pelo Jornal Correio no Instagram no último dia 26 em divulgação da edição, mães de crianças autistas questionaram a viabilidade do evento, que fica em vigor apenas na primeira hora de funcionamento do shopping.
Um dos comentários apontou conveniência na ação. “Parece mais campanha para gringo ver. Nesse horário o shopping já é mais sossegado por natureza”, afirmou o perfil.
Outra usuária deixou uma crítica nos comentários após a ação. “Horrível, que tipo de inclusão é essa? Cheguei lá e não tinha mais nada. Vejo outros tipos de parques e atividades durarem dias, por que para crianças atípicas e com dificuldade de compreender que aquele momento mássico só vai durar 1 hora?”, disse.
A Hora Silenciosa inclui ações como pausa no tráfego de carrinhos de coleta de lixo e de segways; utilização do rádio comunicação apenas com fones de ouvido; desligamento de TVs, displays, totens e mega banners digitais, bem como rádio mall e letreiros das lojas; redução da iluminação do shopping; retirada do áudio das cancelas de estacionamento; suspensão de secadores de mãos e de dispensers automáticos de cheiros nos banheiros; fraldários, banheiros infantis e de adultos com distribuição de protetores auriculares; distribuição de abafadores também nos Espaços Família, nos pisos L1 e L2, e Centro de Atendimento ao Cliente (CAC), no piso L2.





Além da programação padrão, a hora foi destinada ainda a um evento voltado para o público infantil entre os dois e 13 anos, a Arena Ghostforce e a sessão “Ingresso Azul” no Cinemark com a animação “A Fada do Dente”, além de benefícios ofertados pelas operações Villa Encantada e Planeta Imaginário para clientes neurodivergentes.
Marcella Bandeira, publicitária de 34 anos, é mãe de Guilherme, um menino de três anos que está no espectro autista. Para ela, que foi na maioria das edições da Hora Silenciosa, a iniciativa é necessária para seu filho, mas o tempo é curto. “Só quem vive a maternidade atípica sabe da importância. Eles sempre disponibilizam alguma ação para as crianças se divertirem com qualidade e adaptam o ambiente para receber pessoas com transtorno do espectro autista. Tenho vontade que se repita por mais dias no mês e o tempo da ação também aumente”, diz.
Procurado, o Salvador Shopping afirmou, através de Ana Paula Fadul, médica e consultora de Infância do estabelecimento, que mesmo com a limitação de data e horário nas atrações, está cumprindo sua função inclusiva ao proporcionar momentos gratuitos e de diversão para as famílias. “Durante a visita ao shopping, a criança pode ter uma sobrecarga sensorial, o que leva essas pessoas a um nível de esforço e estresse que podem desencadear uma verdadeira crise. Muitas vezes, por medo disso, os pais evitam levar seus filhos ao shopping, o que é uma pena, já que é um ambiente de interação social importante”, declara.
Para Mariene Maciel, presidente da vertente baiana da Associação Brasileira para Ação por Direitos dos Autistas (Abraça), ter medidas voltadas para crianças e adolescentes autistas em um estabelecimento com grande fluxo de visitantes, mesmo que com um tempo limitado, é um início. “Os Shoppings, para muitas pessoas autistas e com sensibilidade auditiva e visual, são locais muito estressantes. Ter um horário com menos estímulos já é um grande avanço para irmos aos poucos trabalhando cada vez mais com espaços mais acessíveis para todos o tempo todo”, diz a especialista.
Entretanto, Maciel defende que a efetividade da integração só vira com o auxílio das autoridades. “Se o poder público cumprir e a sociedade encampar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi internalizada no Brasil como Emenda Constitucional, e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), todas as pessoas com deficiências e neurodiversas estarão inclusas e respeitadas em nossas comunidades.
Medidas permanentes de inclusão na Câmara de Vereadores
Em agosto de 2023, foi publicado no Diário Oficial do Legislativo o Projeto de Lei 170/2023, do vereador Átila do Congo (Patriota), que tornaria facultativo a espaços como shopping centers, hipermercados, ginásios, entre outros estabelecimentos similares, a criação de “Salas de Afeto”, levando em consideração as necessidades específicas das pessoas autistas.
As Salas de Afeto, ou Calm Zones, já presentes nos estados de São Paulo e Mato Grosso, têm uma vantagem em comparação à Hora Silenciosa: são projetadas com cores, equipamentos e iluminação adaptados de forma específica ao Transtorno de Processamento Sensorial (TPS), presente em muitas pessoas autistas.

Segundo Átila do Congo, a ideia surgiu através das dificuldades expostas por familiares residentes nas comunidades visitadas pelo vereador. “Houve diversas conversas e ideias, inclusive sobre essa falta de sensibilidade quanto às pessoas autistas. Por isso, surge a proposta que sugere um espaço específico para receber crianças, adolescentes e adultos com TEA, bem como seus acompanhantes, durante episódios de ansiedade e agitação”, conta.
Jéssica Mendes, designer de interiores e 39 anos e mãe de Joaquim, de cinco anos, considera que a medida possibilitaria visitar ambientes como o shopping mesmo em horários de maior movimento, como a hora de almoço ou aos domingos. “Ter um espaço que acolha essas famílias é muito importante para nos ajudar a manter uma rotina dentro do dito como normal”, diz.
Mendes considera que o espaço de acolhimento diante de uma crise sensorial pode ser crucial para que pessoas autistas e seus familiares não fiquem reclusas, uma vez que a crise pode se manifestar através de comportamentos considerados ‘inapropriados’ por outras pessoas. “Conheço algumas famílias que não saem com os filhos por vergonha diante a uma crise, porque infelizmente as pessoas ainda não tem empatia em acolher ao invés de julgar, e eles acabam ficando reclusos, sem sair de casa”.
É o caso de Ana Paula Brito, de 47 anos, mãe de Ygor, criança autista não-verbal de 12 anos. “Eu saio muito pouco com meu filho. Gostaria de sair muito mais, mas acho que Salvador deixa muito a desejar quando o assunto é inclusão, de escolas a lugares públicos, e não tem lugares específicos para o lazer dos autistas. Isso dificulta a saída, porque nós recebemos olhares preconceituosos, [vemos] pessoas que chegam a confundir um autista em crise com uma criança mal educada”, conta.
O projeto de lei está atualmente na Comissão de Constituição e Justiça e aguarda voto do relator Paulo Magalhães Júnior (DEM) para que possa seguir seu trâmite. Questionado quanto às formas de garantir que a medida seria implantada, diante do teor facultativo, o vereador afirmou: “Acima de qualquer coisa, a fiscalização desta casa deve ser o pilar para o bom funcionamento desta ação. Contamos também com os empresários para a inclusão desta medida de forma garantidora dos direitos da pessoa com TEA”. O projeto pode ser acompanhado clicando aqui.
Maciel, presidente da Abraça – BA, afirma que a associação não tinha conhecimento do PL, mas que considera uma medida interessante. “Acho que promover acessibilidade é obrigação cotidiana. Concordo com as mães: todos os ambientes, por lei, devem ser acessíveis para todas as pessoas. Como grande parte dos autistas tem TPS, é necessário que a sociedade se adapte para que esses sujeitos tenham uma boa qualidade de vida. Lutamos para que todos os espaços sejam acolhedores para todas as pessoas”, comenta. Para a presidente, o objetivo de ações inclusivas deve ser a eliminação de barreiras físicas, arquitetônicas e atitudinais.
Legislação e População O direito de pessoas com deficiência ao lazer, esporte, cultura e turismo em igualdade às demais pessoas é garantido pela Lei 13.146, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. O Censo de 2022 foi o primeiro a incluir uma pergunta para dimensionar quantos porcentos da população brasileira com deficiência são compostos por pessoas autistas, mas os resultados ainda não foram disponibilizados até o momento de publicação dessa matéria. Os números estipulados até então são baseados em estudos periódicos do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência pública de saúde dos Estados Unidos, que apontam que existem entre 1 milhão e 2 milhões de pessoas dentro do espectro no Brasil.