Mais de 7 mil pessoas têm registro tardio de nascimento na Bahia
Anderson F., Esther Morais, João Leal, Laís Maia - 06/12/2023Falta de certidão de nascimento impede acesso a serviços do SUS, educação pública e emprego formal
Sem direito ao voto, trabalho com carteira assinada e acesso limitado às políticas de saúde e educação. É assim que vive uma pessoa que não possui certidão de nascimento, o primeiro documento do cidadão e que permite a emissão de outras documentações civis. No entanto, há possibilidade de fazer o registro tardio. Entre 2019 e 2023, 7.325 pessoas solicitaram o documento de nascimento na Bahia. Os dados são da Associação dos Registradores Civis das Pessoas Naturais do Estado da Bahia (Arpen-Ba).
As cidades que tiveram o maior número de registro tardio neste período foram: Salvador (389), Santa Cruz Cabrália (295), Ilhéus (290), Feira de Santana (269) e Mucuri (192). Dentre as cinco, três fazem parte dos 10 municípios baianos com maior população. Já Santa Cruz Cabrália, no Sul da Bahia, possui territórios indígenas – um dos principais perfis de indocumentados. Mucuri também está localizado no Sul baiano.
Apesar da soma, o estado registrou uma queda de sub-registros ao longo dos anos. A tendência é o número cair, visto que o registro é feito gratuitamente no hospital em que a criança nasce, assim como há mutirões de assistência civil para quem cresceu sem a documentação.
Neste sentido, enquanto em 2019 houve 1.671 registros de pessoas sem certidão de nascimento, em 2023 foram 1.045. Isso representa uma diminuição de 37%. No ano atual os municípios que tiveram mais pedidos de registro tardio foram Una (94), Feira de Santana (56), Salvador (51), Aratuípe (48) e Mucuri (42).
O presidente da Arpen-Ba, Carlos Magno, dá o passo a passo para conseguir tirar o registro tardio. Ele explica que primeiro a pessoa precisa saber se tem a Declaração de Nascido Vivo (DNV), se tiver, basta comparecer ao cartório portando o documento, com duas testemunhas. Caso não tenha, será preciso fazer um requerimento que vai averiguar a situação antes de tirar a nova documentação.
“Existe o caso de uma senhora que estava sem registro de nascimento e por isso não estava conseguindo atendimento pelo SUS, conseguimos fazer atendimento dela e em uma semana já estava com o registro tardio”, conta. “Fizemos também um mutirão no Parque da Cidade em que atendemos uma senhora de 75 anos cega e que não conseguia ter acesso ao serviço de saúde e já estava com saúde debilitada. Em 15 dias ela tirou o registro”, acrescenta.
Magno ressalta que o procedimento para tirar o registro tardio é rápido, totalmente feito no cartório e sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário. Vale ressaltar que atualmente algumas maternidades possuem unidades interligadas ao cartório, ou seja, a pessoa já sai com a certidão de nascimento. Por isso, o registro tardio tem índice baixo e atinge pessoas mais velhas ou que vivem em comunidades menos integradas socialmente, como indígenas.
É o caso da idosa Antônia Araújo, 78, natural de Ibicuí, no interior da Bahia. A aposentada só foi registrada aos 8 anos. O que pode parecer muito tempo para alguns, era algo muito comum na região em que Antônia vivia. “A lei não obrigava os pais a registrarem os filhos na hora em que nascessem. Então, eles não ligavam. Muitos só eram registrados quando já estavam ‘trocando os dentes de leite’. A maior alegria era receber a Certidão”, afirma.
O registro tardio era acentuado por conta das longas distâncias que as pessoas no interior das cidades precisavam percorrer para chegar ao cartório. Isso somado à falta de transporte público. “A gente morava na roça de Ibicuí. Para irmos pro centro, nós íamos de cavalo. Não tinha ônibus e nem tínhamos carro. Eram 8 léguas [38 km]”, relembra Antônia sobre as dificuldades de deslocamento.
Confira a entrevista de Antônia Araújo na íntegra:
Pessoas de comunidades isoladas e idosos são principais indocumentados
Especialistas em estudos sobre o sub-registro, que é o conjunto de nascimentos não registrados no próprio ano do nascimento ou no 1º trimestre do ano subsequente, analisam que os principais perfis de pessoas sem a documentação são de pessoas mais velhas e quilombolas, indígenas e ciganos. A falta de documentação está diretamente relacionada com características como mães muito jovens, nascimento que não acontecem em hospitais e escolaridade baixa da mãe. São esses três pontos que ajudam a identificar e combater o problema.
A supervisora de Disseminação de Informações do IBGE na Bahia, Mariana Viveiros, associa que as pessoas que não têm registro são mais velhas porque hoje há a necessidade de apresentar documentação para iniciar a vida escolar, por exemplo, algo que é mais incentivado e acessível do que há décadas.
Já o presidente da Arpen aponta que quem vive em comunidades mais afastadas também se encaixa no perfil. “São grupos sociais que muitas vezes não são integrados à sociedade e deixam de fazer registro por opção ou ignorância”, indica. A associação faz busca ativa para identificar essas pessoas.
Sub-registro na Bahia
Em 2020, a Bahia atingiu a marca de 190 mil pessoas não registradas, conforme as estatísticas mais recentes do IBGE. Esse número representa um aumento significativo de 90% em comparação com o censo de 2015, quando o número era de 100 mil. Essa constatação posiciona a Bahia em quarto lugar no ranking nacional, ficando logo atrás dos estados de São Paulo (554 mil), Minas Gerais (248 mil) e Rio de Janeiro (200 mil), respectivamente.
Confira o total de sub-registros por estado em 2020:
Apesar do número expressivo de sub-registros na Bahia, quando observado em escala nacional, o total de pessoas não registradas no estado equivale a apenas 3,3% do número total no Brasil.
“O sub-registro de nascimento é o cálculo estimado do número de crianças que nascem, mas não são registradas de imediato, podendo ficar sem registro por até 6 meses”, explica Mariana Viveiros. Segundo ela há diversas razões que levam alguém a não registrar uma criança logo após o nascimento, “Algumas pessoas simplesmente deixam de registrar naquele momento e depois não registram mais. Comunidades indígenas, quilombolas, ciganos são grupos sociais que muitas vezes não são integrados à sociedade e deixam de fazer registro por opção ou ignorância”.
Comum em cidades no interior do estado, o sub-registro atinge principalmente moradores de áreas distantes e de difícil acesso que muitas vezes eram esquecidos. Durante o período eleitoral, políticos ofereciam transporte para que pudessem registrar seus filhos, usando isso como meio de conquistar votos. É o que conta Devison Oliveira, 51, de Itabuna. “Na época de eleição, os políticos sempre apareciam e davam algum tipo de vantagem, um transporte, um dinheiro, porque eles realmente compravam as pessoas para votarem neles”, relata.
Não saber a data ou o ano em que nasceu e, portanto, não saber a sua verdadeira idade é uma das consequências que Oliveira percebe em relação ao registro tardio. “Os pais sempre registravam os filhos muito depois do nascimento. Ai, alguns perdiam o ano em que nasceram”, ele fala e acrescenta que na sua percepção houve uma evolução comparando com os dias atuais, “Hoje, quando a criança nasce, ela já recebe o Documento de Nascido Vivo. Quando o meu filho nasceu, em 2001. Nasceu de manhã e de tarde eu já estava com a certidão dele”.
Confira a entrevista com Devison Oliveira na íntegra:
Um dos 17 objetivos do compromisso de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas até 2030 é fornecer identidade legal para todos, incluindo o registro de nascimento, para tal, a ONU recomenda que a taxa de sub-registro seja inferior a 5% da população do país. Com isso o IBGE considera em suas análises que o sub-registro está erradicado se a taxa de sub-registros for inferior à recomendação da ONU.
É o caso da Bahia que, com base no Censo Demográfico de 2022, tem 14,6 milhões de habitantes e, quando comparado com os dados de sub-registros de nascimentos, significa que apenas 1,25% da população não foi registrada. Em Salvador, por exemplo, a taxa gira em torno de 0,71% da população. O mesmo segue quando se compara com o número de pessoas não registradas em todo o Brasil, pois a Bahia ocupa 3,3% desse total no país. Por tanto o IBGE considera que no estado o sub-registro foi erradicado.
Pesquisas foram interrompidas
Até 2015, os dados de sub-registros eram coletados por meio da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD). “Para o IBGE era importante ter essa informação para estimativa de sub-registro”, conta Mariana. A pesquisa é declaratória, baseada unicamente na resposta do participante. A supervisora de D.I. do IBGE, também afirma que a pesquisa de sub-registros, apesar de confiável, “gera uma estatística pequena em termos proporcionais”. Com uma margem de erro elevada e que não costumava ser divulgada no plano de tabelas do IBGE”.
Para diminuir a margem de erro dos sub-registros, o IBGE mudou a forma de obter esses dados e parou a pesquisa. Atualmente o Instituto passou a coletar dados do ministério da saúde, do programa de Nascidos Vivos, que no momento do nascimento gera uma a Documento de Nascido Vivo, o DNV, com o qual os pais da criança podem dar entrada para obtenção da Certidão de Nascimento.
Para tratar dos sub-registros nos censos demográficos atuais, Mariana explica que o IBGE faz uma pergunta sobre registro voltada apenas para crianças de até 10 anos. “A pergunta é para crianças sem registro. o recorte etário tem a ver com entrada na escola e a partir daí ver onde há crianças de até 10 anos que deveriam estar na escola e não tem o registro de nascimento”, ela explica.
Governo do Estado traça novas estratégias para combate ao sub-registro
A coordenadora de Direitos Humanos da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia (SJDH-BA), Maria Fernanda Cruz, explica que o índice de incidência de sub-registro e não registro no Estado, que era de 12% em 2010, caiu para menos de 2%. E essa diminuição foi resultado da implantação dos programas sociais, da aposentadoria do trabalhador Rural e outras ações do Governo Federal que exigem a documentação em dia.
O Governo da Bahia também realizou mais de 100 grandes mutirões para retirada de documentos em todo o estado nos últimos anos. Mas, hoje a estratégia mudou. “Constatamos que a incidência é mais pontual, por isso, criamos ações específicas, que são mais eficientes e atuam nas localidades onde o problema ainda persiste, como nas comunidades tradicionais”, afirma.
Neste ano, a SJDH-BA criou o projeto Caravana dos Direitos Humanos, que percorre comunidades tradicionais, como áreas indígenas e quilombolas em todo o estado, e oferece, além do registro civil, muitos outros serviços que podem ser acessados clicando aqui. Este ano já foram realizadas 5 Caravanas. Na última edição realizada em outubro na cidade de Porto Seguro, mais de 4 mil indígenas foram atendidos.
Outra iniciativa que já está em curso é a implantação dos anexos de cartório nas maternidades. Os anexos permitem que a criança seja registrada já ali mesmo no local de nascimento, e são interligados a todos os cartórios da região. Isso evita que a mãe que foi fazer o parto em uma cidade diferente da que vive, não precise retornar ao cartório do município em que seu filho nasceu sempre que precisar solicitar algum documento da criança.
E no começo do ano que vem, o Governo do Estado vai lançar o Registra, Mainha, programa que permitirá que a criança seja registrada só pela mãe, incluindo o nome do pai posteriormente. A coordenadora Maria Fernanda explica: “tem pai que não assume o filho, tem pai que não comparece ao registro, pais cumprindo pena… e tudo isso impede que a mãe registre a criança. Com o Registra, Mainha, a questão do nome paterno poderá ser feita depois. O que vai facilitar o registro imediatamente após o nascimento”.
* Para conferir os dados completos do levantamento da Arpen sobre os registros tardios de 2018 a 2023, você pode acessar clicando aqui.