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Mas afinal, que tipo de alfabetização é essa?
- 06/04/2013Segundo Maria Durvalina, do Steven Biko, o método Alfa e Beto é focado em uma perspectiva quantitativa de aprendizagem, o que pode causar apenas a alfabetização parcial dos alunos
Ana Paula Lima e Raquel Santana
Maria Durvalina é professora universitária, pedagoga e uma das fundadoras do Instituto Steven Biko. A organização foi a primeira entidade do movimento negro brasileiro a direcionar a sua atuação com o objetivo de aumentar a população negra nas universidades. Hoje, o Steven Biko é tido não só como cursinho pré-vestibular para afrodescendentes, mas como centro cultural e político para a comunidade negra.
Impressão Digital 126 – Professora, a senhora concorda que os kits de livros fornecidos pelo Instituto Alfa e Beto têm conteúdo racista?
Maria Durvalina– Sim. Em alguns textos, como “As bonecas de Fernanda”, fica claro o estereótipo de beleza defendido pelo autor: diz respeito a um povo branco, loiro, com olhos azuis. Perfil, inclusive, bem diferente das crianças que estudam nas escolas municipais da capital baiana.
ID 126 – Nesse sentido, como a senhora observa a aplicação de um material com este conteúdo, em uma cidade em que a maioria da população é negra?
MD – Este ano a Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira em todas as escolas do país, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, completa dez anos. Exatamente no ano de aniversário da lei, é adotado em Salvador um método educacional como o Alfa e Beto. Isso mostra que, ao invés de progredir, estamos retrocedendo. Um texto que a gente imaginava que atualmente as pessoas, por mais que fossem contra a lei, ou julgassem improcedentes discussões sobre as relações raciais na educação, teriam pelo menos o bom senso, o mínimo de escrúpulos e não deixariam circular um texto com este teor. Para nossa surpresa, o texto não só circula, como é proposto como um material didático, em uma cidade de maioria negra. Isso é preocupante, pois o racismo produz um prejuízo social imenso, não atinge somente as pessoas negras, mas prejudica a sociedade de modo geral.
ID 126 – Se os textos com conteúdos preconceituosos fossem retirados dos livros, o programa poderia ser mantido?
MD- Não. Porque existe toda uma ideologia por trás do material. Ele tem propostas de atividades, traz planos de aula praticamente construídos. Além do conteúdo racista, sexista e homofóbico, os livros também comprometem, até certo ponto, a autonomia da escola. Você não pode achar que em todos os lugares o debate sobre determinado tema será da mesma forma. Uma coisa grave proposta pelo material é essa história de achar um modelo específico de alfabetização apto a ser aplicado para todas as crianças. Em Salvador, por exemplo, embora de modo geral os alunos da rede municipal tenham características semelhantes, há diversas particularidades envolvidas. Qualquer material que dificulte a autonomia dos sujeitos diante do processo de aprendizagem deve ser questionado. Nós, educadores, não podemos aceitar isso. Porque o fundamental do processo educativo, sobretudo na educação básica, não é a gente imaginar que vai ensinar tudo, mas pensar que vamos ajudar essas crianças a querer aprender, mostrar a importância do aprendizado e o conhecimento inerente a elas. Os materiais didáticos precisam ajudar as crianças a construírem conhecimento a partir de suas próprias realidades, precisam ensiná-las a sonhar, a desejar e realizar coisas para a vida, bem como orientar o professor sobre como mediar a aprendizagem. O material do Alfa e Beto, ao criar um método fechado de ensino, não traz essas perspectivas.
ID 126 – Depois dos protestos feitos pelos professores, o secretário da Educação, João Carlos Bacelar, voltou atrás e tornou a aplicação dos kits opcional. A senhora concorda com flexibilização para a utilização do conteúdo?
MD – Eu discordo. Primeiro porque o material não é bom, portanto, não deveria ser utilizado por nenhuma escola e, depois, porque tem o investimento feito, R$ 12 milhões. Se os livros fossem devolvidos, talvez a dívida fosse cancelada. Ainda tem um problema maior: o uso dos kits sem o senso crítico necessário para trazer um contra discurso do discurso que o texto apresenta. É muito perigoso isso!
ID 126 – O método de ensino do Instituto Alfa e Beto (IAB), já foi aplicado em 700 municípios do país. Em cidades como Sobral, no Ceará, e Riachão, no Maranhão, o índice de alfabetização dos alunos no primeiro ano de ensino chegou a 92 e 93% respectivamente, segundo o IAB. A senhora concorda que são números significativos?
MD – É preciso refletir sobre qual sucesso é esse. Para mim, é complicado imaginar e avaliar quão eficiente é um método que ao final do processo de alfabetização só consegue fazer as crianças decodificarem um texto. A criança pode até conseguir juntar as letrinhas e ler o que está escrito. Para algumas pessoas, ser capaz de exercer a leitura é dizer que o aluno está alfabetizado, mas, se não é capaz de entender esse texto e interpretar, o método de ensino não funcionou. Será que as crianças que foram alfabetizadas pelo Alfa e Beto conseguiriam identificar, por exemplo, que esses textos falam mal de alguns grupos e supervaloriza outros? Que o livro não apresenta uma perspectiva de igualdade racial? Há de se pensar qual é o conceito de alfabetização. Se o conceito entende como alfabetizada uma criança que apenas decodifica palavras, aí o Alfa e Beto é um bom método, mas se pensa que o aluno deve saber interpretar o que o texto diz, a coisa muda de figura. Paulo Freire já discorria sobre isso, ele dizia: alfabetizar é aprender fazer leitura de mundo e não leitura de textos.
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