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Nascentes de concreto

Ciro Garcez, Lívia Batista e Tâmara Andrade - 14/12/2022

Tamponamento de rios em Salvador é um problema ambiental visto como solução.

A cidade de Salvador tem no seu histórico a cobertura de rios e outros corpos de água como uma alternativa para a poluição e inundações ou para a realização de obras que têm a pretensão de desenvolver a cidade. Um dos casos mais recentes é o projeto do BRT (Ônibus de Trânsito Rápido, Bus Rapid Transport), que resultou no tamponamento de parte do Rio Camarajipe. 

A obra iniciada durante a gestão do ex-prefeito ACM Neto sempre foi rodeada por polêmicas ambientais. Para o pesquisador Davi Carlos, urbanista baiano especializado em Habitação e Cidade pela Escola da Cidade, localizada em São Paulo, e mestrando em Planejamento e Gestão do Território na Universidade Federal do ABC, também em São Paulo, os maiores problemas do BRT são o orçamento direcionado, o local inadequado, as obras favorecerem mais o transporte individual do que público, o desmatamento e o tamponamento do rio. 

O pesquisador começou a estudar o BRT em 2016, quando o projeto começou a sair do papel. “[O BRT] é mais um concorrente do metrô do que uma solução para aquela área da cidade”, afirma Davi Carlos. “O BRT foi criado em Curitiba nos anos 70. Depois de 50 anos ou mais, Salvador decide adotar esse modal que foi importante na sua época, mas que atualmente não atende às novas ideias de urbanismo” ressalta o especialista. 

Para ele, nenhuma obra da atualidade justifica o tamponamento de rios e o corte de árvores centenárias, como é o caso da construção do Ônibus de Trânsito Rápido (Bus Rapid Transport) em Salvador.

Valéria Almeida é moradora da Alameda dos Jasmins,próxima à avenida em que estão acontecendo as obras, há mais de seis anos e diz que a obra atrapalhou mais do que ajudou na sua locomoção, de maneira que um trajeto que costumava demorar 11 minutos hoje em dia leva cerca de uma hora. “Para sair do Cidade Jardim eu só tenho a Juracy Magalhães e ficou impossível ir pro lado do Costa Azul e do Salvador Shopping. No início, a ACM inteira ficava engarrafada e depois foi a obra do novo Itaigara, que só ajudou quem mora no Horto. Quem mora no Candeal que precisa subir a Cruz da Redenção ficou péssimo: o retorno agora tem que ser feito mais longe, na estação do BRT Cidadela”, critica a estudante em entrevista para o ID 126

A jovem também reclamou da falta de passarelas para pedestres no decorrer da obra: “Para atravessar, uma pessoa precisa atrapalhar todo o fluxo de carros. Não foi pensada nenhuma estrutura”.

Um dos aspectos prejudiciais relacionados ao encapsulamento do Rio Camarajipe, e de outros rios, é a grande interferência que a impermeabilização do solo gera. Este tipo de construção impede que a água não infiltre mais no solo, o que faria com que esses rios voltem a ter cursos d’água mais caudalosos. A falta de terra também causa a impossibilidade de aquíferos serem alimentados ou existirem na cidade, então a água não brota mais na terra. Com isso os alagamentos e enchentes vão ser um problema constante e um prejuízo para todos ao redor. Se houvesse uma área no entorno dos rios com uma mata ciliar, onde a terra e a cobertura vegetal absorvessem a água, não só o medo de chuva seria menor quanto teríamos rios mais fortes, limpos e uma cidade mais agradável termicamente. Com o concreto e a transformação do rio em esgoto, que não vê a luz solar, a chuva aumenta o volume de água do rio, que despeja tudo no mar e suja a orla marítima, prejudicando pescadores e banhistas.

Além da perda ambiental relacionada aos rios, a obra também foi questionada quanto ao desmatamento de 579 árvores próximas do Rio Camarajipe, e em outras regiões da Avenida Juracy Magalhães, apenas na primeira etapa do BRT (Bus Rapid Transport), algumas delas centenárias. Urbanistas e ambientalistas argumentam que esse desmatamento contribui para o aumento da temperatura do local e maior recorrência de enchentes, algo já perceptível na cidade.

Segundo o site do projeto do BRT, a Prefeitura de Salvador plantou 200 novas mudas e transplantou 169 árvores, correspondentes a 63,73% do número de árvores retiradas, como forma de responsabilidade ambiental. Também de acordo com o site, as árvores transplantadas serão cuidadas até se adaptarem ao novo espaço. 

Mesmo sendo um dos casos mais lembrados atualmente, a política de tamponamento dos rios não é nova em Salvador, uma cidade que já teve esses corpos de água como um aspecto importante na vida de seus moradores. 

Um BRT consiste em uma linha exclusiva para ônibus sanfonados e climatizados, que têm uma capacidade maior de passageiros. Em Salvador serão duas linhas: a linha 1, já concluída, da Rodoviária até a Pituba, e a linha 2 terá como destino a Lapa e ainda não está concluída. A fase de testes começou em 30 de setembro de 2022 e, no dia 11 de novembro, começou a fazer parte da integração de transporte junto ao sistema de ônibus e metrô da cidade

Não muito tempo atrás…

Ainda no século XX, Salvador era abastecida pelos próprios rios e fontes. O Rio do Cobre, em São Marcos, tinha uma barragem que servia para retirar a água e abastecer todo o Subúrbio Ferroviário de Salvador. As fontes eram reconhecidas como pontos de retirada de água na cidade, como era o caso da Fonte do Gabriel e da Fonte da Graça. A própria alimentação dos moradores vinha desses rios, com peixes de rios alimentando moradores. Até hoje ainda existe pescaria no Rio do Cobre, onde fica o Jardim Botânico, em São Marcos. Uma convivência pacífica e sustentável com os seus corpos d’água seria benéfica para todos.

Segundo o professor Luiz Roberto Santos Moraes,71, professor do curso de Engenharia Ambiental, a gestão da cidade achava que precisava de cursos de água mais caudalosos, assim parou de utilizar as águas dos próprios rios para ir atrás das águas do Rio Joanes. Após isso houve a mesma discussão, já que parecia que o Joanes não era mais suficiente, aí foram retirados do Paraguaçu. A água cada vez mais distante, mais cara de tirar e com mais custos de infraestrutura”. Uma cidade úmida e com tantos cursos d’água poderia utilizar os próprios rios de maneira sustentável do ponto de vista ambiental e econômico.

Outro aspecto a ser considerado é a grande interferência que a impermeabilização do solo gera. Com as avenidas de vale e grandes obras erguidas ao longo de rios, com seu consequente encapsulamento ou restrição, a água não infiltra mais no solo, o que faria com que esses rios voltem a ter cursos d’água mais caudalosos. A falta de terra também causa a impossibilidade de aquíferos serem alimentados ou existirem na cidade, então a água não brota mais na terra. Com isso os alagamentos e enchentes vão ser um problema constante e um prejuízo para todos ao redor. Se houvesse uma área no entorno dos rios com uma mata ciliar, onde a terra e a cobertura vegetal absorvessem a água, não só o medo de chuva seria menor quanto teríamos rios mais fortes, limpos e uma cidade mais agradável termicamente. Com o concreto e a transformação do rio em esgoto, que não vê a luz solar, a chuva aumenta o volume de água do rio, que despeja tudo no mar e suja a orla marítima, prejudicando pescadores e banhistas.

Histórico dos rios de Salvador

A política que feriu os rios do Brasil e de Salvador nas cidades foi a que se traduziu como “abertura de avenidas de vale”. Um modelo que visava grandes obras de infraestrutura e de aumento da cidade trouxe, para onde correm os rios, a pista de carro e o concreto. A povoação desordenada também foi outro fator que atingiu os fundos de vale. Assim, a área fluvial deixou de ser vista como área intocada, mas como passível de obras urbanas. O aumento populacional da cidade trouxe outra problemática para os rios de Salvador. 

A política das avenidas de vale pode ter de certo modo acabado, já que os vales quase todos foram ocupados por asfalto na cidade, mas a política ambiental do encapsulamento e do concreto nas margens dos rios segue aliada ao crescimento urbano. É o caso da gestão feita pelo município de Salvador e Estado da Bahia com o Rio Jaguaribe.

O rio que desemboca na terceira ponte, na Avenida Otávio Mangabeira, Piatã, foi vitimado pelo crescimento que se voltou para a orla marítima da cidade. Antes a região tomada pelos condomínios de casas ou de áreas vazias, viu o número de torres residenciais crescer em um ritmo frenético. Lavínia Bomsucesso, 48, moradora da região desde a década de 90, conta que antigamente a natureza tomava conta do local. 

“Antes o Jaguaribe abrigava uma fauna e flora exuberantes, um clima muito diferente do que se encontra hoje”, conta Lavínia. As obras ao longo do rio e a especulação imobiliária na região fizeram o poder público acabar com as margens de terra e colocar concreto. Muito, para prejuízos de moradores que moram bem ao lado do rio, onde ele alaga quando enche, mas também pelos novos moradores que parecem optar por um bairro que não tenha mais o rio que dá nome à praia e a grande parte dos condomínios da região. Mas houve reação.

O movimento “Salve o Rio Jaguaribe” foi uma iniciativa da sociedade civil contra o que estava sendo feito ao longo desse corpo de água. Fizeram caminhadas, levaram alternativas ao poder público de como poderia ter sido a obra de macrodrenagem, levaram especialistas, pediram consulta pública, mas nada disso foi acatado. O modelo de concreto ao longo do rio para trazer estrutura e saneamento básico, foi o modelo adotado do início ao fim. Uma obra cara, que não resolve o problema e cria outros. 

Confira esse e outros depoimentos:

No artigo Rios Urbanos: problemas ou oportunidades para Salvador, de autoria da professora Nayara Amorim, da faculdade de arquitetura da UFBA; e do professor Lafayette da Luz, do departamento de engenharia ambiental da escola politécnica da UFBA, essa gestão do Jaguaribe tem graves problemas. Eles acusam o INEMA de ter uma nota técnica pseudocientífica, que  advoga pela obra de macrodrenagem já que o rio já está “morto”, então não modificaria em nada a atual situação. A nota, para eles, não tem nenhum dado de biomonitoramento, sem embasamento para acusarem a morte do rio.  Em resposta à nota, vários professores do Mestrado de Meio Ambiente, Água e Saneamento (MAASA) da escola politécnica, que além de de apontar a já citada falta de monitoramento, “não considera a recuperação das condições degradadas desse rio urbano”

 Assim, Piatã e outros bairros banhados pelo Jaguaribe, que é exatamente a região da orla marítima que era menos concretada à beira da orla atlântica, tem perdido características da região. Lavínia pensa que o rio teria o poder de fazer o bairro se agregar em volta do rio, já que carente de áreas públicas de sociabilidade, o rio seria essa área possível de convívio. Com o rio se vão possibilidades de um bairro diferente do que se vê em Salvador, com a possibilidade de lazer, sustentabilidade, pesca, consumo de água e alternativa de uma convivência urbana diferente.

Mesmo que não as vejamos mais, Salvador é uma cidade formada pelas águas. Isso é comprovado pelas ocupações iniciais da cidade, que se sustentavam tendo uma fonte de água próxima para consumo e um rio para ajudar na defesa. Esse é o caso, por exemplo, da Barra e da Graça, que têm seus históricos datados desde os tempos de Caramuru, que construiu a vila na Barra com a foz do Rio dos Seixos para a defesa da vila e construiu a fonte da Graça para Catharina Paraguaçu banhar-se. A cidade alta, que compreende o Centro Histórico, também foi feita sabendo quais fontes e rios passavam pela região. Essas e outras breves histórias da formação dos bairros de Salvador podem ser encontradas no livro O Caminho das Águas em Salvador: Bacias hidrográficas, bairros e fontes (2010), uma extensa pesquisa organizada por Elisabete Santos, José Antônio Gomes de Pinho, Luiz Roberto Santos Moraes e Tânia Fischer, pesquisadores da UFBA, que mapeou a bacias hidrográficas da cidade, coletou amostras das águas para saber como estava a qualidade e tentaram achar cada fonte que alimenta os rios. “Antes a Embasa confundia rios e tinha um número de bacias que não correspondia ao real. Se confundiam fontes, nascentes e rios. Fomos em cada uma, mapeamos e separamos os rios que hoje é o mapeamento atual das bacias da cidade”, explica Luiz Roberto Santos Moraes,71, professor do curso de Engenharia Ambiental e um dos pesquisadores que fizeram parte da pesquisa do livro, que definiu que Salvador tem doze bacias hidrográficas e nove bacias de drenagem natural.

Para Moraes, estudantes de Engenharia Ambiental, e a sociedade baiana em geral, não saberem citar o nome de pelo menos um rio é uma situação preocupante. “Por anos dei um componente de primeiro semestre na UFBA para estudantes de Engenharia Ambiental e a primeira pergunta que eu fazia era: falem o nome de um rio de Salvador. Normalmente ninguém conseguia responder”. Esse cenário é reflexo de uma política pública de apagamento desses rios, a sua maioria aterrados, encapsulados ou totalmente poluídos. Política pública ao nível federal, com financiamentos de bancos e do próprio Estado, como foi o caso do rio dos seixos que se encontra na Avenida Centenário e foi encapsulado enquanto João Henrique era prefeito de Salvador, de 2005 até 2012.

Um outro reflexo da falta de conhecimento sobre a importância dos corpos de água da cidade é a percepção de moradores de Salvador de que a solução para o mau cheiro, a sujeira e os alagamentos é o tamponamento de rios.  Segundo pesquisas com o envolvimento do próprio Luiz Roberto Santos Moraes, a falta de planejamento e o crescimento urbano desordenado são os verdadeiros fatores que deram origem aos problemas relacionados aos rios que passam por dentro das cidades.  Para Lafayette Luz e Nayara Amorim, isso causa problemas sobre planejamentos no nosso futuro próximo “Estudos apontam que cidades litorâneas precisam criar zonas de amortecimento naturais, aumentando a permeabilidade e retenção hídrica, bem como a estabilidade dos terrenos. Estudos do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais indicam Salvador entre as cinco cidades costeiras mais vulneráveis.”


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