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Negros no jornalismo: além das páginas policiais
Kelven Figueiredo - 31/01/2018Especialistas, professores e militantes do movimento negro expressam sua insatisfação com a falta de diversidade na representação dos negros no jornalismo
A representação do povo negro sempre foi uma deficiência na sociedade em geral. Embora esta situação tenha melhorado em algumas esferas da comunicação, ainda que mais lentamente, é no jornalismo que o problema maior se concentra. Segundo uma análise feita pelo jornalista Diogo Costa em seu trabalho de conclusão de curso (TCC), os jornais baianos, em sua maioria, ao noticiarem autos de resistência, frequentemente utilizam o termo “Confronto com a polícia”.
A análise realizada por Diogo consistiu em checar como são noticiados autos de resistência nos Jornais Correio* e Massa!. Na pesquisa, foi observado que no jornal Correio* 34% das 30 notícias analisadas foram produzidas sob o enquadramento de confronto com a polícia, enquanto no Massa! o número é ainda maior e representa 53%, de 30 publicações.
Fonte: Diogo Costa
Fonte: Diogo Costa
Para a Bacharel em Artes, estudante de jornalismo e pesquisadora ávida quando o assunto é representatividade do povo negro, I’sis Almeida, o termo mais utilizado no jornalismo deriva diretamente da relação entre jornal e polícia, normalmente a militar. “Sabemos que a polícia militar é para os jornais um dos topos da pirâmide de fontes oficiais. Esse problema é do jornalista? Não. No entanto, confrontar informações e ouvir o máximo de fontes possíveis evita que vidas, não estou me restringindo apenas a vidas negras, sejam possivelmente destruídas por um setor que deveria estar a serviço da população, assim como a própria polícia.”, acredita ela.
Para I’sis, se um jornalista não se encoraja a fazer além do que os modelos impõem, fatalmente os profissionais estarão fadados a repetição destes termos, onde apenas as notas da assessoria da polícia são consideradas como fontes. Ela também acha imprescindível que antes de ser publicado qualquer conteúdo no jornal é fundamental ouvir todos os lados da história, o que na opinião dela não acontece com tanta frequência quanto ela gostaria.
Este é um ponto de vista que parece ser compartilhado com Diogo, autor da pesquisa. Ele acredita que o jornalista necessita entender que ao escrever algo que expressa ódio ou preconceito fere os direitos humanos e não cumpre o próprio código de ética que rege a profissão. “É preciso entender que o jornalista possui responsabilidade por aquilo que escreve, e pensar também que aquilo que ele torna público será lido e comentado. Acho importante que o jornalista escute o povo negro, que pergunte as suas versões dos fatos quando eles estiverem envolvidos.” , defende ele.
Por outro lado, ele considera importante também não generalizar e atribuir toda a culpa ao jornalista. Para ele as empresas de comunicação também ajudam a reforçar preconceitos quando não ofertam as condições mínimas necessárias para que o jornalista apure a pauta como deve ser apurada e principalmente quando acreditam na versão da polícia como uma verdade inquestionável.
O que os jornalistas têm a dizer?
Com quatro anos de redação, o jornalista e militante do movimento negro Yuri Silva entende que a ausência de pessoas negras em papéis de destaque nas matérias jornalísticas tem muito haver com dois fatores: um histórico e outro sociorracial. O histórico se dá porque o jornalismo nasce das elites, na França durante a Revolução Francesa. Evento em que a burguesia triunfou. Para ele, o jornalismo nascer nessas condições já diz muito sobre a relação que ele tem com essa classe que se tornou dominante.
O fator sociorracial fica por conta do fato que por muito tempo o ofício de jornalista foi exercido por pessoas brancas e de classe alta, o que automaticamente deixava os negros fora não só das pautas de interesse, mas também das redações já que por muito tempo eram raros os negros que tinham acesso às universidades. Para ele, a situação só melhora quando negros começam a entrar nas redações e mudar um pouco essa lógica quando tomam a iniciativa de falar sobre assuntos voltados à pauta racial o que dá destaque a especialistas negros.
Ele ainda avalia a cena do jornalismo baiano um tanto quanto preconceituosa, já que os negros só obtêm destaque nos jornais em pautas que falam de negritude e movimento negro. “Raramente você vê negros falando sobre medicina, economia, política”, aponta. E isso talvez seja em função de que muitos jornalistas não têm essa preocupação em entrevistar fontes negras, mas sim os considerados melhores especialistas em determinados assuntos. “Pensar assim não ajuda muito porque vivemos em uma sociedade racista em que os considerados melhores especialistas, na grande maioria das vezes, são pessoas brancas e isso dificulta a diversidade de fontes negras nos jornais”.
Iniciativas que podem mudar esta narrativa
Cansada da falta de representação de pessoas negras em lugares de destaque no jornal, como na figura de especialistas, a professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Emanuele Pereira propôs a seus alunos que realizassem um mailing apenas com especialistas negros.
A proposta surgiu quando a turma começou a realizar um caderno especial voltado para temáticas étnicas-raciais e notou a dificuldade de encontrar essas fontes. Foi necessário realizar uma pesquisa para encontrar empresários e especialistas negros. “Para a gente não faz sentido realizar um especial sobre a questão racial sem ter o negro falando sobre o assunto”, declarou Emanuele.
Na montagem do mailing foram acionados também alguns veículos de Comunicação da região e hoje o material já conta com mais ou menos 50 fontes. Na lista é possível encontrar advogados, psicólogos, empreendedores, jornalistas e profissionais das áreas de saúde, educação e gastronomia.
Para a professora, esta dificuldade em encontrar especialistas negros se dá porque dentro da própria academia o número de professores, mestrandos e doutorandos negros ainda é muito baixo. Além disso, ela acredita que para os negros e negras é mais difícil conseguir algum reconhecimento em suas pesquisas dentro das universidades. A pretensão de Emanuele é que a versão digital do caderno especial seja apresentada no Fórum Social Mundial e integre a programação do evento.
O jornalista Yuri Silva também tenta dar um jeito de mudar, ainda que aos poucos, essa realidade. “No jornal A Tarde eu tenho tentado pautar e conseguido emplacar, na maioria das vezes, assuntos da pauta racial que eu considero importantes até porque o jornal é quem é responsável por registrar a microhistória”, declarou. Ele ainda cita Cleidiana Ramos, Maíra Azevedo, Meire Oliveira e Fabiana Mascarenhas no jornal A Tarde como grandes contribuintes para inserção da pauta racial na imprensa baiana. O que Yuri chama de “trabalhos de formiguinha” porque pouco a pouco este assunto vem ganhando mais destaque, mas para ele ainda é preciso evoluir muito neste sentido.