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O que ficou para trás

- 04/05/2016

Três idosas relembram a juventude e contam os sonhos que, devido a época em que viviam, não puderam ser realizados

Bruna Castelo Branco e Dudu Assunção | Foto destaque: Dudu Assunção

Antes de começar as aulas, a professora Delzuíta Castro observava as crianças sentadas em quatro fileiras na sala, fazia a chamada, apanhava o giz e começava a escrever palavras aleatórias no quadro negro. Eram aleatórias porque a professora, na verdade, era uma menina pequena, o quadro era a parede do quarto improvisada e as alunas eram bonecas que ajudavam a ilustrar um sonho de infância nos anos 30 e 40 na cidade de Maragojipe, no interior da Bahia. Mas o sonho da criança não sobreviveu à fase adulta. E se hoje pudesse acordar sem o peso de seus quase 87 anos, Dona Bela – como é chamada Delzuíta – não tem a menor dúvida: “Eu faria tudo diferente”.

No tempo em que Dona Bela era jovem, principalmente em cidades pequenas do interior do estado, as mulheres não tinham muitas opções quando planejavam o futuro: brincar de boneca, depois aprender a cozinhar, estudar o quanto der e, finalmente, arranjar um casamento – ou ter um casamento arranjado. “Era tudo diferente de como é hoje”.

O sonho de ser professora primária, Dona Bela nunca contou nem para a família. Mas, quando foi ficando adolescente, decidiu se desvencilhar da ilusão e encarar a vida que se apresentava como a única que poderia ter. “O tempo foi passando e o meu sonho morreu. Perdi a ilusão”. Por quê?. “Ah, era difícil. Não é como hoje… Em Maragogipe só tinha escola até o primário, para terminar de estudar, tinha que vir para Salvador. A gente não tinha condições”. Mesmo com os problemas financeiros da família, os homens que quiseram continuar com os estudos conseguiram. Às duas mulheres, entre os quatro irmãos, restou o trabalho doméstico como possibilidade depois do casamento.

Hoje, Dona Bela conta aliviada que seus filhos tiveram uma vida melhor do que a dela. Conseguiram estudar e ter uma profissão. Com orgulho, pega o porta-retrato com a foto do mais velho, no dia da formatura, e exibe: “Ele estudou matemática”. Se satisfaz enquanto conta a vida do filho professor, que experimenta a felicidade que Dona Bela nunca teve para si.

Em nome do pai

Dona Maude relembra seus sonhos | Foto: Bruna Castelo Branco

Qualquer pessoa que chegar à casa de Dona Maude por volta das 17h vai ter que esperar ela terminar de rezar o terço. “Rezo todo dia às 4h30 da manhã e às 5 da tarde. Aí se eu falar com alguém, atrapalha”. Preces terminadas, comenta: “é para ajudar todos os meus filhos e netos. Falo o nome de cada um. Não tive um marido bom, mas pelo menos tive meus filhos”.

Ao relembrar os seus longos 77 anos de vida, Haidée Maude Mascarenhas, nascida na cidade de Caldas de Cipó, diz com certeza que nunca realizou um sonho sequer. A começar pela adolescência, quando a sua maior diversão era espiar por uma fresta da janela – escondida do irmão – os jovens se divertindo do lado de fora. “Eu não podia fazer nada que eu queria. Não podia sair só, não podia ter uma amiga, ir à praia. Ele dizia que eu não ia e pronto. Mamãe não tinha voz em casa”.

Entre as maiores vontades da jovem Maude, estava a de trabalhar. Nada específico, diz, só o necessário para ganhar algum dinheirinho e ficar independente. “Até vender uns docinhos na rua eu queria. Eu via as pessoas vendendo e achava uma coisa tão alegre”. Mas o irmão mais velho nunca deixou. Ele passou a administrar as finanças da casa depois que o pai abandonou a família e foi morar em outra cidade. Assim, controlava os passos da mãe, das duas irmãs e, posteriormente, da noiva. “Ela tinha um emprego nos Correios. Quando eles casaram, ele a obrigou a pedir demissão. Ela foi com os olhos cheios de lágrimas. Nunca esqueço”, diz Maude, enquanto conta que seu novo sonho passou a ser sair de casa. Mas, na época, a família pressionou, pois uma moça, diziam, só poderia sair de casa depois do casamento.

No final das contas, ela trocou o irmão pelo noivo. Se casou. Continuou impedida de trabalhar e, assim, permaneceu dependente. “Essa é a pior humilhação que uma pessoa pode passar”. Desde o casamento, vive praticamente brigada com o marido e, há mais de 20 anos, dorme sozinha, em um quarto separado. “Mas, para mim, era a única saída. Não tinha jeito”. Hoje, continua a rezar. “Rezo para que Jesus amoleça o coração dele e ele se torne pelo menos um pai melhor”.

O filho que não nasceu

Cecília de Jesus, 84, brincando de boneca | Foto: Bruna Castelo Branco

Cecília de Jesus, que completa 84 anos em julho, ainda não deixou de brincar de boneca. Na verdade, criou o hábito já na vida adulta, porque na infância, quando vivia na cidade de Conceição da Feira, precisava trabalhar nas plantações da roça para sobreviver. “Eu não tinha dinheiro nem para comprar uma roupinha. Quando podia, fazia meus próprios brinquedos”. Ela foi doada pelos pais biológicos e não tem lembranças nada boas dos dias com a família adotiva. Entre muitas horas de trabalho na infância e surras frequentes, só conseguia pensar em sair dali. Não era sonho, era necessidade.

Na juventude, Cecília buscou então alcançar dois objetivos: encontrar outro lar e, mais tarde, ter filhos. Aos 15 anos, conseguiu fugir da casa no interior e, de carona em carona com desconhecidos, veio parar em Salvador, “mas o trabalho nunca parou”. Trabalhou como babá, empregada doméstica e camareira, quando sofreu uma tentativa de estupro pelo filho do patrão da pousada enquanto arrumava um dos quartos. “Fui embora de lá, porque se eu ficasse…”. Não completa a frase. Fica nervosa com as lembranças. “Para você ver como são as coisas”. Em alguns momentos, não evita chorar ao contar a própria história.

Alguns meses depois de largar o emprego, Cecília acabou se casando. Como era comum na época, o marido não quis que ela continuasse trabalhando fora de casa. Já com tantas marcas de trabalhos na infância, imaginou que poderia pelo menos viver para cuidar do filho que queria ter, para tentar encontrar nele algum conforto e a realização que não conseguiu para si.

Cecília engravidou. Quando a barriga estava começando a crescer, um acidente caseiro a fez murchar definitivamente. “Nunca soube se seria menino ou menina”. Tempos depois, o marido morreu e, sem dinheiro nem trabalho, a jovem Cecília não tinha como se sustentar.

Hoje, velhinha, mas com cabelos que nunca ficaram brancos, vive em um asilo em Lauro de Freitas. No quarto, as dezenas de bonecas que passaram longe da sua infância a fazem companhia. “Já quero ir logo. Está na hora”, diz sobre a vida. Pretende deixar as bonecas para crianças que não têm com o que brincar. “Aqui, elas foram as filhas que eu não tive, da vida que eu não tive”, conta, enquanto se lembra de um tempo que espera que não volte nunca mais.

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