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País em insegurança alimentar
João Victor Tourinho e Nicolle Pereira - 06/07/2022Paula dos Santos, 24, é maquiadora e está desempregada há mais de um ano. Ela vive a insegurança alimentar na pele. Mãe de três crianças pequenas, ela e o esposo, também desempregado, precisam ir todos os dias às ruas de Salvador pedir alimentos. A família recebe Auxílio Brasil e Auxílio Moradia, mas o valor não permite comprar os alimentos básicos para o mês inteiro, já que boa parte dos gastos é destinada ao aluguel e ao gás de cozinha. No Dia dos Namorados, 12 de junho, o casal e os três filhos passaram o dia sem comer, pois não conseguiram nenhuma doação de alimento.
“O que mais dói é minha filha acordar de manhã e não ter nada pra comer. Isso machuca. Às vezes, a refeição principal é café com açúcar e farinha dentro”.
Paula dos Santos, desempregada
De acordo a professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (Enufba), Sandra Maria Chaves, a prática de misturar farinha com café para formar bolas de alimento é muito comum no sertão do estado. “Migrei para a Bahia em 1992 e comecei a fazer pesquisas por volta de 1995 e 1996. Nos municípios pobres do estado, a situação era terrível. As pessoas iam à roça fazer as bolas de farinha e a criança ficava com a mistura o tempo todo na boca, resultando em uma criança inchada”, relembra. “Esse tipo de alimentação impacta diretamente no crescimento físico, intelectual e no desenvolvimento cognitivo das crianças”, explica.
Chaves, que é vice-coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), também chama a atenção para o fato de que as pessoas estão passando fome e comem mal. “Se uma pessoa que não tem o básico está com fome, não vai procurar comer salada de alface com agrião e ovo. Vai buscar algo que custe barato”, pondera.

O caminho da fome no Brasil
Paula não é a única que enfrenta essa realidade cara a cara. O número de brasileiros mal alimentados está crescendo no país. De acordo com a segunda edição do Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) em 2022, somente este ano cerca de 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer e 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar.
Durante a pandemia, a fome e a falta de alimentação adequada estiveram ainda mais presentes no cotidiano dos brasileiros, com mais da metade (58,7%) da população vivendo com insegurança alimentar em algum grau. Os dados foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e Distrito Federal. A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia).

Ainda de acordo com a pesquisa, 4 em cada 10 famílias das regiões Norte e Nordeste relataram redução parcial ou severa no consumo de alimentos nos três meses que antecederam as entrevistas. As formas mais severas de insegurança alimentar (moderada ou grave) atingem mais a população nas regiões Norte (45,2%) e Nordeste (38,4%).
Na Bahia, a situação não é diferente. De acordo com os dados mais recentes da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 4,897 milhões de domicílios no estado, 2,221 milhões (45,3%) tinham algum tipo de insegurança alimentar. Em Salvador, conforme dados da pesquisa QUALISalvador, entre 2018 e 2020, 59,1% das famílias estavam em condição de insegurança alimentar. A condição de insegurança é vivenciada por 40,9% da população soteropolitana.

“A fome não é nordestina. A fome é brasileira. O Sul e o Sudeste chegaram até 85% em segurança alimentar, com apenas 15% em insegurança alimentar e quase zero na sua forma grave. Hoje, o Sul tem 51% de segurança alimentar e o Sudeste 45%”, informa Sandra Maria Chaves. Segundo a professora da Enufba e vice-coordenadora da Rede PENSSAN, o Norte e o Nordeste têm uma herança de desigualdade acumulada. “A partir de 2016 e 2019, estas regiões foram as mais desprestigiadas politicamente, com a paralisia das polícias públicas”, analisa.

Fenômeno complexo e estrutural
Para o economista Gustavo Casseb, presidente do Conselho Regional de Economia da Bahia (Corecon-BA), a insegurança alimentar é um fenômeno complexo e estrutural, essencialmente vinculado à falta de renda e desigualdades sociais. É um problema muito mais de exclusão social do que inflação, ou seja, está mais associada à ausência de renda do que a um processo inflacionário. O aumento de preços também tem um papel fundamental nesta falta de acesso, porém, não é a causa principal da insegurança alimentar no país.
“É por considerar o problema muito mais no campo sociológico, social, das desigualdades e da insuficiência de renda, que eu digo que é muito mais correto associar a insegurança alimentar ao não acesso, ao não mercado e a exclusão no sentido mais amplo, e menos a um processo inflacionário crônico. Embora [esse problema] também esteja associado a este processo inflacionário”, observa. Ainda de acordo com o economista, este problema não está vinculado apenas a pandemia da Covid-19.
Políticas públicas interrompidas
Embora a pandemia de Covid-19 e sua má gestão tenha evidenciado a desigualdade social e aumentado os níveis de insegurança alimentar e fome no país, os números têm crescido desde 2016, segundo Sandra Maria Chaves. De acordo com a pesquisadora, a partir de 2003 o Brasil conseguiu expandir políticas públicas de combate à fome e à insegurança alimentar, sendo uma das ações mais conhecidas a Estratégia Fome Zero, com o Programa Bolsa Família.
“Quando olhamos a trajetória, há um certo conforto em dizer que foi a pandemia, mas não”.
SANDRA MARIA CHAVES
Em 2004, o IBGE realizou a primeira pesquisa sobre insegurança alimentar. À época, 64,8% das famílias estavam em segurança alimentar. Esse número aumentou, em 2009, para quase 69,6%. Em 2013, chegou a 77,1%. A mudança drástica, segundo Sandra, veio em 2017 e 2018, quando a EBIA foi novamente aplicada com a pesquisa de orçamentos familiares do IBGE. “Houve o impeachment, reforma trabalhista no governo Temer, paralisia das políticas sociais, e um conjunto de desmontes. O Bolsa Família não foi extinto, mas foi feito o recadastramento. O impacto disso é rápido”.
Conforme menciona a pesquisadora, o Brasil sabe tirar a população da fome, e os dados entre 2004 e 2013 revelam essa estatística. Entretanto, ela revela que, hoje, após o desmonte de políticas públicas e a situação na qual o país se encontra, é preciso ter uma atenção redobrada. Segundo ela, um dos primeiros movimentos é ouvir novamente a sociedade civil. “Como cidadãos, nós temos que nos apropriar disso e demandar o cumprimento do que está na Constituição: o direito humano à alimentação. Não estamos pedindo nada além disso”, finaliza.
