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Perfil: “Sou sensacionalista do dedo do pé ao fio do cabelo”, diz Alana Rocha

- 05/07/2017

Primeira repórter transexual na TV aberta baiana fala sobre as dificuldades que enfrentou e revela bastidores do seu trabalho na TV Aratu

Maria Landeiro

Foto: Divulgação

Em um sofá de couro preto, numa manhã de segunda-feira, eu esperava minha entrevistada. Assistia a programação da manhã da TV Aratu, enquanto ouvia as conversas da secretária no telefone e via repórteres, jornalistas e outros funcionários chegando para mais um dia de trabalho. Há cerca de um ano, Alana Rocha, primeira mulher transexual a ser repórter de um programa da TV aberta na Bahia, também tinha estado sentada no mesmo lugar, esperando por uma oportunidade.

Por volta das 10h, ela chegou. De cachos no cabelo com mechas loiras, calça jeans justa, camiseta e salto alto. Com um sorriso largo no rosto (coisa rara de se ver em uma manhã de segunda-feira), ela soltou um beijo para a secretária ao pegar seu crachá, ainda, provisório. Fomos conduzidas à uma salinha, próxima a recepção e, sentadas em outro sofá preto, começamos a nossa conversa.

Há pouco mais de um ano, Alana, que é natural de Riachão do Jacuípe, cidade do interior da Bahia, veio para Salvador buscar a tão sonhada chance de trabalhar na TV como repórter. Com o currículo na mão, seu primeiro alvo foi a TV Record, onde ela esperava ser atendida pelo seu ídolo máximo. “Zé Eduardo, o Bocão, era meu ídolo, eu tinha uma tatuagem dele nas costas. A Record era meu grande deslumbramento”, mas só um milagre faria a emissora religiosa aceitar Alana na sua equipe.

“Ele [Zé Eduardo] me decepcionou. Fui barrada, bateram a porta na minha cara e me botaram pra sentar no passeio. Tomei uma chuva que assanhou meu cabelo todo. Mentiram dizendo que Zé Eduardo ia vir mas ele não veio. Foi o pior dia da minha vida”. Claro que as piadinhas também não ficaram de fora. “Segurança fazendo hora da minha cara porque perceberam que eu era transexual. Aí ficavam perguntando se era ele ou era ela”. A mágoa era nítida nos movimentos fortes que fazia com a mão e nos seus olhos.

Com cabelo “fedendo a queimado” – ela, muito vaidosa, o havia pranchado – molhada e ainda com o currículo na mão, Alana não se contentou com a má recepção. “Depois de chorar muito dentro do carro e rasgar currículos, me lembrei da TV Aratu”, conta. “Peguei uma borracha de dinheiro, prendi o cabelo e fui para lá, mas já com medo”. Assim, ela foi parar na recepção da emissora e pediu a secretária para falar com Carla Araújo, uma das apresentadoras da emissora. Depois de muita conversa e fotos tiradas, Carla aconselhou a Alana que entregasse seu currículo para o gerente de conteúdo do programa policial Ronda, Pablo Reis.

Com um pingo de esperança, ela voltou para Riachão e, há pouco mais de três meses a oportunidade bateu na porta. “Abri o Facebook e tinha um recado de Pablo perguntando se eu era jornalista. Eu disse que sim e enviei uma foto do meu diploma para ele. Aí ele disse assim ‘Você quer vir para Salvador fazer uma experiência no Ronda como repórter? ’” Foi impossível para ela (e para mim) conter o sorriso nessa hora. “Minha mãe tava lavando prato e eu disse, ‘Minha mãe eu tô sem a alma [termo muito usado por Alana]. Pablo tá me chamando pra ir pra Salvador ser repórter da TV Aratu!’”.

Dois dias depois, ela já estava na capital. “Quando eu cheguei, foi uma alegria grande. Todo mundo me abraçando, me desejando boas vindas”. Durante 25 dias, ela trabalhou como repórter no programa Ronda, enquanto o jornalista Murilo Vilas Boas estava de férias. Depois deste período, ela passou pelo programa de entretenimento Universo Axé e agora integra a equipe do programa Tudo Novo, apresentado por Darino Sena.

Vida de repórter

Foto: Divulgação

Seu dia de trabalho começa às 10h, quando chega na redação. “Primeiro me inteiro dos assuntos com [Jasmin] Chalegre, que é a produtora. Ai vou pra maquiagem e 11h40 já estou saindo pra rua para fazer pauta. Volto umas 13h, almoço aqui mesmo, e depois pego as pautas impressas que deixaram pra mim, e vou fazer na rua de tarde”. Jasmin Chalegre é estudante do 7ª semestre do curso de jornalismo na Universidade Federal da Bahia (Ufba) e estagia na parte de produção do Ronda.

Nem Alana, nem Jasmin escondem a forte relação que têm uma com a outra. “Sou louca, apaixonada por ela. A gente tem um elo muito forte”, diz Alana com carinho. Para Jasmim, ela não só ganhou uma colega de trabalho, mas também uma confidente. Segundo ela, a equipe do Ronda era formada apenas por homens e, apesar de se dar bem com todos eles, ela sentia falta de uma companhia feminina. “Alana virou uma amiga. Eu conversava com ela sobre tudo e ela contava coisas dela também. Ela é uma profissional muito dedicada. Ela gosta disso em mim e eu gosto disso nela”.

Jasmin não esconde sua primeira reação quando soube que Alana ia entrar para a equipe. “Quando conheci Alana foi aquele choque. Eu via uma mulher, mas ela já havia sido um homem. Fiquei com medo de errar, porque por mais que a gente apoie à causa a gente não tá inserido naquele meio, não é meu lugar de fala. Eu ficava com medo de cometer alguma gafe. E se eu falar algo errado?”, contou Jasmim.

O jeito receptivo de Alana, que permeou toda a nossa entrevista, também tocou a estudante. “Quando ela chegou, toda a apreensão foi desfeita, eu conversei com ela sobre as minhas dúvidas e ela se postou muito natural”. “Para quem tá iniciando carreira, como eu, ter a oportunidade de conviver com uma pessoa dessas no seu ambiente de trabalho é muito enriquecedor”.

“Minha mãe, percebendo essa sensibilidade em mim, descobriu que havia uma psicóloga em Itabuna que tinha um doutorado com especialização em transexualidade. Me descobri uma mulher transexual aos 13 anos, com o diagnóstico dessa psicóloga”.

O começo de tudo

Até conseguir seu emprego dos sonhos, a vida de Alana foi permeada de mudanças, descobertas e muita luta para alcançar seu objetivo. Desde criança queria ser jornalista. “Lembro de Kátia Guzzo, que apresentava o jornal da TV Bahia. Eu tinha mania de assistir o jornal e copiar tudo que ela falava. Isso com uns 12 ou 13 anos”, lembrou ela.

“Quando minha mãe saía para trabalhar, eu entrava no quarto dela e fingia que estava apresentando um telejornal”. Ao falar da caixa de sapato que virava câmera e do pedaço de pau com uma bola de isopor que servia de microfone, Alana ria como se lembrasse de um passado distante, gostoso, como se pudesse brincar assim até hoje.

Sua infância e adolescência não foram muito lineares. Nasceu em Riachão do Jacuípe, não teve irmãos e foi criada apenas pela mãe, Dona Conceição, mais conhecida como Conchita. “Esse é seu apelido, eu tatuei ele nas costas para cobrir a tatuagem de Zé”. Com olhos marejados, ela não esconde a devoção ao falar da mãe. “Eu fui criada só por ela, só eu e ela. Foi muito sofrimento. Tudo foi minha mãe, ela já deixou de comer pra eu poder comer em tempos de dificuldade”.

Aos 13 anos, foi morar em Itabuna com um tio, e lá teve mais contato com TV, que era muito forte na região através da TV Cabrália, TV Santa Cruz e TVI. O motivo por trás da mudança de Alana já era a transexualidade, depois de ter passado por um tratamento psiquiátrico em Feira de Santana, que deu um diagnóstico errado. “Minha mãe, percebendo essa sensibilidade em mim, descobriu que havia uma psicóloga em Itabuna que tinha um doutorado com especialização em transexualidade. Me descobri uma mulher transexual aos 13 anos, com o diagnóstico dessa psicóloga”.

Os primeiros sinais começaram a aparecer na pré-adolescência, quando Alana percebeu que tinha atração por meninos. Aos 10 anos, brincando de esconde-esconde, Alana foi beijada por um menino. “Hoje ele é casado, é hetero, nunca teve relação com homossexuais. Muitos anos depois desse fato, ele me disse que, naquele dia, viu uma menina em mim”, lembrou.

Depois de ficar um ano e meio em Itabuna, Alana partiu com a mãe para o Rio de Janeiro, para dar suporte à avó, que morava lá. Não demoraram muito tempo na capital fluminense e, quando Alana voltou para Bahia, decidiu ir morar com parentes em Itaparica, aos 15 anos. “Eu já queria fazer minha transição, então comecei a trabalhar e estudar lá”. Por conta de brigas familiares, ela e a mãe vieram morar em Salvador. “Foi quando se deu minha transição completa. Fui estudar no Colégio Severino Vieira e sofri muito preconceito. O diretor não queria que eu usasse o banheiro feminino, e eu acabei brigando e parando os estudos com 16 anos. Aí comecei a me dedicar a fazer shows em boates”.

Diferente de muitas artistas que gostavam de interpretar divas pop, como Mariah Carey e Whitney Houston, Alana já gostava de um bom forró. “Eu dublava Calcinha Preta, Joelma do Calypso. Fazia as coisas em casa mesmo, pegava uma calça, cortava e fazia um short bem curtinho”, lembrou.

Sua transição se completou aos 22 anos, quando começou a pesquisar cirurgias de mudança de sexo e procurar saber da burocracia para mudar o nome social. “Comecei a fazer tratamento médico com endócrino, fazendo complementação hormonal, que continuo até hoje através de pílulas”. Ela ainda não conseguiu trocar o nome social. Quanto à cirurgia, para ela não é prioridade no momento por conta do pós-operatório extenso, riscos e custos. Enquanto isso, ela tem tido relacionamentos que não interferem na sua condição de mulher transexual. “Se eu fizer a cirurgia vai ser uma coisa para o meu conforto e não por conta de relacionamentos. Eu vou ter que dizer pro cara a minha história, eu não vou apagar meu passado por conta da cirurgia”.

Em 2003, a família voltou para Riachão e lá, Alana começou a trabalhar em campanhas políticas. Foi nessa época que conheceu o apresentador Zé Eduardo e criou o blog Hora da Verdade onde fazia reportagens em vídeo dos casos policiais da cidade. “Eu não conhecia a teoria. Se você vir meus primeiros leads no blog era tudo doido, eu fazia um plano sequência maluco. Era eu que gravava, tinha câmera, microfone, tudo”.

Vídeo produzido por Alana Rocha no Blog Hora da Verdade

Com todas as dificuldades, o que manteve Alana firme no seu objetivo foi a sua fé e esperança. Nesse ponto da nossa conversa, ela cita a música Nunca Deixe de Sonhar, da extinta banda Rouge. “Quantas vezes eu ouvi essa música e chorava, pensando que meu sonho nunca ia se realizar”.

Universitária

A falta da teoria e as poucas chances de trabalho fizeram Alana correr atrás de uma graduação. “Na época pensei que um diploma iria me abrir mais portas, então fiz o vestibular fora de época da Unime, em Itabuna. Só tinham cinco vagas e em passei em 4º lugar”. A saudade da sua Conchita deixou que Alana fizesse apenas um semestre em Itabuna. Depois, através de uma transferência externa, ela foi estudar na Faculdade Anísio Teixeira, em Feira de Santana, onde se formou em Jornalismo em 2016.

Um dos seus colegas foi Roberto Pain. Ele lembra de vê-la pelos corredores da faculdade e lamenta ter descoberto que ela era uma mulher trans através de comentários preconceituosos dos outros colegas, como traveco. Alana nunca teve nenhum problema em falar que era trans e que até brincava com a situação. “Na lista de chamada ainda constava seu nome de batismo, ai quando chamavam ela dizia, ‘esse ai é falecido, não veio hoje não”. Para Roberto esse tipo de comportamento é uma forma de proteção. “Antes de a pessoa fazer chacota, ela já faz uma brincadeira, para aquela chacota não existir”.

O gosto de Alana pelo sensacionalismo era motivo de diversas discussões entre os colegas. “A gente critica muito o sensacionalismo na academia, mas como ela era muito teimosa, não adiantava argumentar. Depois eu percebi que nós estávamos condenando uma área que a acolheu. Foi o que deu espaço para ela e a colocou na TV Aratu”.

Na TV Aratu

Seu foco agora é 100% no trabalho. “Quero me profissionalizar mais e minha meta é ser apresentadora fixa do Ronda”, diz ela, orgulhosa. É então que faço a pergunta que está na ponta da língua desde quando a vi pela primeira vez apresentando o jornal. “Como é para você, que sofreu com o preconceito na pele fazer um programa policial sensacionalista, que é conhecido por ferir os direitos humanos?”

Sua resposta é enfática. “Eu gosto dessa pegada sensacionalista, adoro. Eu sou sensacionalista do dedo do pé ao fio do cabelo”, sentencia. Segundo ela, levar para o lado do humor é a melhor forma de lidar com essas situações. Alana conta que costuma “brincar com o preso” para tentar fazer ele “se soltar”. O argumento da defesa, de que o preso tem ali a oportunidade de contar a sua versão da história, é o mais usado. “A maioria não quer e viram as costas, mas tinha uns que davam risada. Teve um em Lauro de Freitas que tava com uma sacola cheia de pino de cocaína, aí eu fui na pegada, ‘Menino, que diabo é isso? O que é que você vai fazer com tanto pino de cocaína?’ aí ele, ‘Cheirar tudo’, ai eu digo. ‘Eita diabo!, Nariz de concreto é?’, e ele, ‘Ô a lapa do nego’, lembrou. “Ele mesmo se colocou na brincadeira”, disse ela gargalhando.

Relação com delegados e policiais também não é um problema. “Muitos nem sabem que eu era uma mulher trans, achavam que eu era uma mulher normal. No cotidiano, na rua, aqui na TV e nas pautas, me veem como uma mulher como qualquer outra”.

Na época que Alana assumiu o Ronda, o meio LGBT explorou ao máximo o assunto, e ela deixa claro que quer que o assunto seja abordado mais. “Claro que isso reverteu em boa publicidade para a emissora, e eu criei isso também. Eu quero explorar isso o máximo possível, quero por a Aratu em evidência, é tanto que isso se reverteu em audiência e foi maravilhoso”, comentou. Desde que entrou para o programa, as redes sociais de Alana vêm crescendo cada vez mais e hoje, ela já conta com mais de 8.500 seguidores no Instagram.

Ao fim da entrevista nos despedimos com um abraço caloroso e dois beijos. Alana seguiu para a maquiagem e se prepara para mais um dia de trabalho, obviamente, com muito bom humor.

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