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Um mal-estar psíquico causado pelo racismo diário na capital mais negra do país
Lizandra Santana, Luana Gama e Luciano Marins - 25/09/2019Por Lizandra Santana, Luciano Marins e Luana Gama
A busca pela saúde mental no tratamento para doenças como depressão e ansiedade é um dos assuntos mais comentados atualmente, e quando se trata da população negra, o tema é bastante delicado. Muitos são os motivos que fazem as pessoas buscarem ajuda psicológica, e um fato determinante na saúde mental desta população são as várias faces do racismo. Um levantamento divulgado em 2019 pelo Ministério da Saúde (MS) evidencia a importância de debater o tema, e como a criação mais efetiva de políticas públicas em saúde mental direcionadas a esse grupo são urgentes. Segundo a cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros do MS, entre 2012 e 2016 o número de casos de suicídio entre jovens negros cresceu, enquanto entre pessoas brancas esse número permaneceu estável.
“Um dos grupos vulneráveis mais afetados pelo suicídio são os jovens e sobretudo os jovens negros, devido principalmente ao preconceito, à discriminação racial e ao racismo institucional. Muitas vezes as queixas raciais podem ser subestimadas ou individualizadas, tratadas como algo pontual, de pouca importância e ainda culpabilizando aquele que sofre o preconceito.”
Cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros do MS
Embora ainda existam muitos tabus sobre o tema, a saúde mental da população negra precisa ser tratada também como um caso de saúde pública e Salvador é um local onde essa pauta tem despertado o interesse de jovens e adultos. Para se ter uma dimensão social, a Bahia é considerada o estado onde mais pessoas se declararam negras, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2018, do IBGE. Com isso, cerca de 82,1% da população soteropolitana se autodeclara preta, o que já denota a importância de políticas públicas para a população negra. No entanto, como afirma o psicólogo Pablo Jacinto, as políticas públicas para a população negra em Salvador praticamente inexistem. “Nós temos uma secretaria, a Sepromi [Secretaria de Promoção da Igualdade Racial], que promove ações juntamente com outras secretarias no intuito de garantir a igualdade racial, mas essa não é uma secretaria de saúde menta”, alega.
Como resultado da existência de uma tal democracia racial, a área da saúde psicológica negligencia a existência de fatores como o racismo, na busca de pessoas negras por tratamento psicológico. Existe um despreparo de terapeutas – negros ou brancos – em lidar com questões específicas desse grupo, o que reflete na falta de serviços gratuitos de psicologia e acolhimento mental que possam dar conta das suas demandas. Para Pablo, a falta de conhecimento e estudo é um dos principais fatores que levam muitos psicólogos brancos a não compreenderem as demandas raciais nos consultórios.
“Independente de quem você esteja atendendo, seja preto, branco ou indígena, você precisa executar a sua função com a máxima capacidade de atuação que você tenha. Então é obrigatório que a gente acolha as demandas sem pensar nas diferenças raciais. Entretanto, nem todo mundo compreende essas dimensões raciais por falta de estudo e podem deixar passar algumas demandas que têm relação com a questão racial e tratar como se fosse um sofrimento inerente de outras fontes, sem considerar essa dimensão como importante. […] falta capacitação profissional e aprofundamento teórico sobre o racismo estrutural.”
Pscicólogo Pablo Jacinto
No Brasil, o racismo tem se configurado como principal determinante social das desigualdades impostas à população negra, e isso pode ser visto na distribuição de renda no país. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, pretos ou pardos representavam 75,5% das pessoas com os 10% menores rendimentos, contra 23,4% dos brancos. Essa desigualdade se reflete na falta de acesso à educação, saúde de qualidade, moradia, emprego e outros direitos básicos do cidadão, e são fatores que afetam a saúde mental da população negra de uma forma mais intensa do que à população branca.
Adelmo Filho, negro, 24 anos, estudante de Psicologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
O racismo afeta intensamente a saúde mental da população negra. Prova disto são as diferenças nas queixas levadas aos consultórios de psicologia. Negra, atuante no atendimento psicológico que envolva as questões ligadas à população negra e mulheres vitimas de violência, a psicóloga Tatiana Mendes conta que os pacientes negros costumam relatar casos de racismo nas sessões de terapia.
“Por exemplo: uma mulher branca e uma negra estão inseridas no mesmo contexto, na sala de aula. Ambas passam por dificuldades acadêmicas, mas enquanto a mulher branca está sentindo dificuldade em interagir com outras pessoas ou entender o assunto, a mulher negra é isolada propositalmente – racismo estrutural -, sendo assim, ela passa a ser cada vez mais introvertida e anti social, afetando outras áreas da vida dela.”
Psicóloga Tatiana Mendes
Tatiana também conta que durante o atendimento prestado por ela às mulheres negras, percebe que muitas relatam dificuldades em se relacionar afetivamente com outra pessoa. “Nesse quesito, é importante lembrar sobre a solidão da mulher negra”, defende.
Segundo a psicóloga, a maioria desses casos de racismo relatados durante as consultas costumam acontecer em ambientes acadêmicos, profissionais e sociais. Buscando coletar dados de como o racismo afeta a saúde mental desta população em Salvador, o ID 126 disponibilizou um questionário para que pessoas negras pudessem responder algumas perguntas sobre o tema. No total, 137 pessoas preencheram o questionário, que ficou disponível entre os dias 25 de setembro a 14 de outubro de 2019.
Quando se trata de saúde mental da população negra, quem está no posto de psicólogo também sofre com os efeitos do racismo. Foi o que aconteceu com a própria Tatiana, ao atender uma paciente branca. “Ao abrir a porta do consultório, a mesma me olhou dos pés a cabeça e perguntou ‘marquei um horário com a Dr. Tatiana, poderia chamá-la, por favor?’ Fui confundida com a recepcionista. Estendi a mão e me apresentei como a psicóloga que havia marcado com ela. Ao ver minha mão estendida, ela recuou e disse que havia sido um engano, que marcou errado. E foi embora”, relata.
Um das respostas do questionário foi o relato de Giuliane Reis, moradora de Salvador, que relembra um caso de racismo sofrido dentro do transporte coletivo, em consonância com os casos recebidos por Tatiana Mendes.
Esse é apenas um dos casos de racismo ocorrido num ambiente social e que é levado para a terapia. Ademais, em outros ambientes, o racismo velado é percebido de forma cruel.
“Ônibus lotado como de costume, uma senhora entra e mesmo eu não estando sentada nas poltronas de prioridade, resolvi ceder lugar (foi assim que aprendi), e pra minha surpresa lembro quando ela levantou a voz pra mim, dizendo ‘vai ceder lugar pra quem imunda? Eu prefiro sentar ao lado de um leproso que sentar em um lugar de preto.”
Giuliane Reis
“É uma luta coletiva!”
“Minha psicóloga sugeriu que os meus relatos sobre racismo poderiam ser coisas da minha cabeça”, depoimento anônimo enviado através do formulário.
Empatia, representatividade, compreensão. Esses são alguns dos sentimentos expressos pelas pessoas que responderam ao questionário e concordam que psicólogos negros entendem melhor os dilemas específicos da população negra causados pelo racismo, em relação a um profissional branco. Para Pablo Jacinto, cabe ao profissional não fechar os olhos para os dilemas raciais que são abordados durante as sessões de terapia. “É necessário que quem trabalha com saúde mental entenda que as pessoas negras são perpassadas pela questão racial, são atravessados pelo racismo estrutural. Então, como psicólogo, muitas demandas e sofrimentos que chegam, tem relação com a questão racial e isso precisa orientar a nossa prática”, explica Pablo Jacinto.
Ouça alguns desses relatos:
Jacinto ainda conta que nas grades de psicologia há pouco ou nenhuma referência voltada a essa temática. Ademais, até teóricos negros não são colocados em evidência, pois ainda estudam-se autores e autoras brancas, muitos europeus e norte-americanos. Ele fala que “em relação à questão da saúde mental, o curso de psicologia da uneb é majoritariamente formado por negros, apesar do corpo docente ainda reproduzir algumas coisas. Lá, por ter uma trajetória de cotas, sempre houve um debate sobre a questão racial no curso de psicologia, muito por pressão e por influência dos alunos que trazem para os professores a importância de debater a questão da saúde população negra, como um todo”.
Apesar dessa lacuna no currículo do curso, o debate ainda é promovido por iniciativas dos alunos, fora da grade curricular. “São seminários, cursos de extensão e isso está crescendo muito e os estudantes de psicologia estão tendo mais acesso a esses debates”, conclui.
Redes de apoio
Em relação aos locais de atendimento na cidade voltadas para a saúde mental da população negra em Salvador, ainda são escassos. Apesar de ter uma população majoritariamente negra, o município não dispõe de serviços específicos relacionados a saúde mental dessa população. O único local na cidade que presta esse serviço é a Secretária de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Lá, são oferecidos serviços de acolhimento para quem sofreu algum tipo de discriminação racial ou intolerância religiosa.
Existe também o CAPS – Centro de Atendimento Psicossocial, para transtorno mental grave, o Cetad – Observatório Baiano sobre Substâncias Psicoativas, voltado para atenção à população usuária de drogas, o Programa Corra pro Abraço, iniciativa da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDHDS) do Estado da Bahia e os abrigos para pessoas em situação de rua e vulnerabilidade.
Com o intuito de valorizar e dar visibilidade aos profissionais negros na área de saúde, a startup AfroSaúde conecta esses profissionais com pacientes que buscam representatividade. Esses profissionais e pacientes negros de todo o Brasil podem se cadastrar gratuitamente na plataforma e buscar as especialidades, além de poderem avaliar o atendimento. O combate ao racismo e à desigualdade no mercado de trabalho são os pilares que norteiam o AfroSaúde, segundo os criadores.