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“Quando vi mulheres nas fichas técnicas dos jogos, pensei: ´É possível!´”
- 25/01/2017A game designer Ana Antar conta como é trabalhar com desenvolvimento de jogos em um mercado predominantemente masculino
Flávia Lima, Jessica Carvalho e Michelle Oliveira | Ilustrações: Michelle Oliveira com vetores de Freepik.com Fotos: Acervo Pessoal
Ana Antar, 30 anos, trabalha como diretora, gerente de projetos e game designer em um estúdio. A diretora conta que a falta de representatividade feminina nesta área foi algo que adiou a escolha de trabalhar com jogos.Formada em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Ana se especializou em Game Design pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e lidera a equipe da ERA Game Studio, uma startup que cria projetos onde se misturam jogos digitais e teatro. Também é roteirista e uma das lideranças da Bahia Indie Game Developers (BIND). Nesta entrevista, Ana contou como conhecer mulheres em fichas técnicas de jogos foi fundamental para sua escolha profissional.
Impressão Digital 126: Você é formada em teatro e especializada em Game Design. Como essas áreas se relacionaram na sua carreira?
Ana Antar: Eu e minha equipe tínhamos uma relação com os games como jogadores, mas nunca pensamos em trabalhar com jogos. Foi algo que descobrimos durante o processo. Ao mesmo tempo, eu comecei a trabalhar com jogos em outros lugares. Hoje eu sou roteirista e game designer, mas foi algo muito natural. Eu não sonhei trabalhar com jogos a vida inteira. Nós fazíamos teatro e queríamos inserir elementos de jogos nos espetáculos. Começamos a fazer “espetáculos jogáveis” e a pesquisar sobre o universo dos games para conhecer melhor. A maior parte da equipe era de teatro. Não tínhamos programador, designer ou qualquer pessoa da área de games, como temos hoje. Então a Uneb abriu a especialização e, como não tínhamos profissionalização, eu fiz o curso. Depois, dividi o que aprendi com o grupo, já que o conhecimento precisa ser horizontalizado. Foi um processo quase natural. Queríamos fazer jogos com a plataforma teatro e procuramos a profissionalização.
ID 126: Qual é o tipo de jogo que vocês produzem?
AA: Temos tudo que um jogo digital tem, mas temos atores em cena, por exemplo. Esse processo foi difícil porque não achamos nada parecido até hoje. Não queremos fazer espetáculos com elementos de jogos, mas jogos na plataforma do teatro.
ID 126: Houve resistência da comunidade de jogos por ser algo diferente do comum?
AA: Foi algo que teve muita resistência. Eles não entendiam o que a gente fazia como jogo. Por vários fatores: por eu ser mulher, por causa da estrutura muito distinta das quais eles estavam acostumados, entre outros… Ainda é algo que precisamos enfrentar, mas temos um público que consumiu “Escape” de uma maneira muito positiva, por exemplo.
ID 126: Como você começou a trabalhar com jogos?
AA: Eu sempre joguei, mas não considerava que era possível fazer jogos. Não tinha referências de mulheres no mercado. Era um mercado extremamente masculino. Além de achar que apenas programadores fazem jogos e eu não programava. Então eu nunca vi o ‘fazer jogos’ como algo possível. Não que não existissem mulheres na área, mas eu não conhecia. Até que alguns jogos me fizeram pensar na possibilidade, como “Portal”, onde vi uma mulher como responsável na ficha técnica, e “Mirror’s Edge”, que tinha uma mulher como roteirista e me fez pensar “olha, uma mulher roteirista! Elas existem! É possível!”. Então faltava referência, representatividade. Não tínhamos personagens femininos que a gente conseguisse se identificar, não víamos as mulheres do mercado.
ID 126: Agora que você trabalha com jogos, como você se comporta em relação a essa falta de representação?
AA: Hoje eu trabalho representatividade de diversas formas. Em primeiro lugar, mostrando para as pessoas que é possível, que existem pessoas fazendo. Na empresa e nos produtos, por outro lado, tentamos evitar os estereótipos que existem quando os personagens são mulheres ou negros, por exemplo. Tentamos individualizar as pessoas.Em “Escape”, nossa personagem feminina não é frágil. Ela luta e decide as coisas muitas vezes. Ela não está seminua. Nosso ator que é negro fez muitos personagens sexualizados em sua carreira, mas aqui tentamos evitar isso, colocando-o no papel de nerd, entre outros, porque também era coerente com a narrativa. É importante que todos os tipos que existem sejam representados. O negro sexy existe, mas não é só isso. A gente quer representar gente de verdade. O interessante é que algumas meninas vêm assistir e dizem “Quero ser como a Alissa” (personagem do jogo Escape). Porque é possível ser ela. A menina pensa “ela é tão normal quanto eu e faz coisas muito legais, então eu posso fazer também”.
“A gente foi apagada da história. As primeiras programadoras foram mulheres e ninguém sabe disso.”
ID 126: Você sofreu preconceito por ser mulher em sua carreira?
AA: Eu nunca tive problemas com a minha equipe. Eu enfrentei problemas com o mercado porque eu sou mulher, pareço frágil, pareço ser mais nova do que eu sou etc. Mulheres passam menos credibilidade em um mercado dominado por homens. Como atriz, havia o problema de vir de outra área. Tem algumas coisas que não são ditas para você, mas que ficam nas entrelinhas. O processo foi muito difícil. Na carreira como um todo, houveram momentos muito ruins. Como trabalho com a parte técnica, é pior porque há poucas mulheres. Já entrei em cabine e ouvi o cara dizer “aqui mulher não trabalha”. Eu não posso fingir que coisas assim não aconteceram, mas sei que ainda foi mais fácil para mim que para muitas mulheres porque eu sou branca, por exemplo. A gente não resolve esse problema se não abrir a discussão. Parece que não sofremos nada, nada acontece. Eu acho que hoje está melhor porque temos mais acesso à informação. Sabemos que há mulheres no mercado. Mas a solução não é imediata, é um processo gradativo.
ID 126: Inclusive, pesquisas indicam que 52,6% dos jogadores de games são mulheres, mas elas ocupam apenas 10% entre os desenvolvedores…
AA: Exatamente. E se pensarmos em mulheres negras, esse número cai muito. Se pensarmos em mulheres trans, cai mais ainda. A gente foi apagada da história. As primeiras programadoras foram mulheres e ninguém sabe disso. A partir do momento que a gente não se enxerga, não se sente representada, a gente não se vê naquele lugar. E isso vale para qualquer área, não apenas nos jogos. Já aconteceu de eu estar dando uma palestra e mostrar que 52% dos jogadores são mulheres e um cara levantar da platéia e dizer “ah, mas você está considerando “Candy Crush” como jogo”. Mas Candy Crush é jogo, eu não tenho como desconsiderar isso. Por outro lado, há uma parcela de mulheres que acreditam que apenas as hard gamers* são gamers. Dizem “eu sou jogadora porque eu sou muito boa” porque ela foi condicionada pela visão masculina a acreditar nisso. E isso cria uma cisão dentro do próprio grupo.
ID 126: O que você acredita que ainda pode ser feito?
AA: Precisamos desconstruir esse cenário e essa mulher. O problema não está só no homem, mas na gente também. Porque somos educadas para manter esse cenário como está. Então não podemos resolver todos os problemas hoje, mas hoje ele está bem melhor que quando eu comecei.Ainda temos muito chão para trilhar. Por exemplo: nós, mulheres, sempre falamos sobre mulheres. Quando é para falar sobre game design, roteiro, carreira etc, sempre um homem é chamado. Para as mulheres sobram apenas as pautas sobre mulheres. Não que a gente não queira falar sobre, porque é preciso falar. Mas há uma discrepância entre homens e mulheres falando sobre carreira.A gente precisa falar para preparar o mercado para a gente porque ele não está pronto. Nos jogos e em outras áreas, só aconteceram mudanças porque brigamos por isso. O reboot da Tomb Raider, por exemplo, é fantástico porque ela está vestida como um personagem masculino que está em um cenário de guerra semelhante. E não de roupas curtas ou maiô em um cenário desses. Os personagens sexualizados podem existir, mas não pode ser só isso.
“É importante que todos os tipos que existem sejam representados.”
* Hard gamers – são jogadores mais experientes, competitivos e que investem mais tempo e dinheiro em jogos. Ou seja, levam os jogos realmente a sério. Se contrapõem àqueles que jogam apenas casualmente, por diversão.